Por Elisângela de Albuquerque Sobreira
Pós-doutoranda em Epidemiologia Experimental Aplicada às Zoonoses na Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Ecologia e Evolução e doutora em Animais Selvagens pela Universidade Estadual Paulista. Coordenadora de Fauna da Prefeitura de Anápolis (GO). presidente da Comissão de Animais Selvagens e Meio Ambiente do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Goiás e docente na UniGoyazes.
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Dados epidemiológicos mostram que epidemias de doenças zoonóticas, algumas delas originadas da vida selvagem, estão aumentando. Existem mais epidemias e elas são compartilhadas entre um número crescente de países. Elas estão se tornando cada vez mais pandemias. A globalização e o comércio internacional favorecem a disseminação de doenças infecciosas, ao mesmo tempo que tornam os países cada vez menos resilientes às crises de saúde.
A grande aceleração das epidemias é consequência da intensificação do comércio. O número de passageiros do transporte aéreo aumentou drasticamente. Uma grande pandemia já era previsível. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou de “doença X ” e listou vários agentes infecciosos potenciais, mas sem explorar de perto as condições socioecológicas de seu potencial para emergir. Programas importantes, dotados de recursos consideráveis, foram colocados em prática.
A atual pandemia cruelmente destaca o fracasso das estratégias de preparação e de previsões para doenças emergentes (uma falha já observada durante a epidemia de Ebola, na África ocidental). Preparação através de medidas de biovigilância e biossegurança ou catalogação de todos os vírus da natureza em animais, embora importantes, não foram suficientes para prevenir o surgimento de zoonoses ou para reduzir as condições propícias a pandemias.
O número de epidemias zoonóticas está globalmente correlacionado com a crise da biodiversidade. Países que são ricos em biodiversidade ameaçada são também os com um alto número de epidemias. Os fatores causais subjacentes a isso podem ser encontrados no aumento da pecuária, do desmatamento e na perda de habitat tradicionalmente manejados para o benefício de plantações.
A análise dos dados globais ao longo do tempo mostra que o aumento da pecuária é uma das principais causas tanto do declínio da biodiversidade quanto do aumento das epidemias zoonóticas.
A crise da biodiversidade é mais do que uma extinção programada de espécies selvagens. É uma importante modificação das interações interespecíficas (entre organismos de espécies diferentes) essenciais para o funcionamento adequado de ecossistemas e a manutenção da qualidade dos serviços ecossistêmicos. A simplificação de vários habitat por meio da agricultura industrial diminui a regulação ecológica dos animais reservatórios, favorecendo a dispersão de agentes microbianos que circulam na vida selvagem para animais domésticos e humanos. O serviço ecossistêmico que regula a transmissão de doenças é neutralizado. Os habitat cuja diversidade foi simplificada perdem sua resiliência ecológica, bem como sua resiliência às epidemias.
A experiência da Covid-19 nos mostra que a gestão da atual emergência sanitária está sendo feito sem uma compreensão dos processos que levaram desde o seu início à crise global de saúde. A ecologia de seu surgimento é reduzida a uma história sobre um pangolim vendido em um mercado em uma grande cidade chinesa.
A origem de um agente infeccioso e de seu reservatório é biológica. Dentro de um conjunto de SARS-CoV2, é um beta-coronavírus com uma espécie de morcego insetívoro como reservatório e, potencialmente, um pangolim como um mamífero hospedeiro intermediário. Pesquisa nesse nível de análise varia de virologia a imunologia de doenças infecciosas. Esta pesquisa torna possível completar a catalogação de vírus potencialmente emergentes e sua adaptação ao hospedeiro a fim de desenvolver novas ferramentas de diagnóstico e tratamento.
A transmissão ocorre em um contexto ecológico, social e econômico. Esse contexto pode ser o da crise da biodiversidade, do tráfico de animais selvagens, do desmatamento, do aumento da pecuária e da globalização do comércio e do turismo. Para entender isso é preciso compreender as condições locais de transmissão interespecífica entre o morcego e o hospedeiro intermediário, seguido pela expansão da transmissão de pessoa para pessoa. Em outras palavras, requer a compreensão de como um vírus que circulou silenciosamente em populações de morcegos em algum lugar na Ásia pode acabar, alguns meses depois, em todas as populações humanas do planeta.
Há a necessidade de percepção da epidemia pela população humana, por profissionais de saúde e tomadores de decisão. Tendo adquirido o status de crise de saúde, é primordial a implementação de quarentenas, de contenção, de limitações de movimentos nas ruas, de técnicas de rastreabilidade e do desenvolvimento de testes de rastreamento e de modalidades de tratamento. Esse gerenciamento de medidas tem implicações para emergir da crise, aprender lições com ela e ser preparado para potenciais problemas futuros de saúde. Infelizmente, cada crise de saúde levou apenas a fortalecer as medidas de biossegurança em vez de abordar as causas sociais e ecológicas da emergência e da propagação das próprias epidemias.
As epidemias e o surgimento de zoonoses são sintomas de ligações disfuncionais com os animais, selvagens e domésticos. Pouca consideração está sendo dada à saúde dos ecossistemas em si mesmos. As medidas de saúde não são bem implementadas nas políticas preconizadas pela OMS.
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