Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Quando se pede para alguém citar um animal com escamas e que respira dentro da água, dez entre dez habitantes da Terra mencionarão algum peixe. Isso porque poucos sabem que, dentre os insetos, os animais mais numerosos do planeta, há grupos que se enquadram nesses requisitos. A ordem Lepidoptera inclui as familiares borboletas e mariposas, insetos bastante populares e encontradiços até mesmo em ambientes urbanos [1]. Por isso, e por serem muitas vezes relativamente grandes e vistosos, costumam estar entre os insetos mais admirados. Aliás, são um dos poucos insetos que gozam de alguma simpatia popular.
Algumas das características mais marcantes dos adultos de lepidópteros são o fato de as asas serem cobertas por escamas, facilmente destacáveis, e o aparelho bucal do tipo sugador-maxilar muitas vezes formando uma estrutura em “língua-de-sogra”, a espiritromba. Assim, a dieta é líquida, à base de néctar. Por sua vez, as larvas, popularmente chamadas de lagartas, apresentam mandíbulas como peças bucais, alimentando-se de folhas, o que as torna potencialmente prejudiciais à agricultura [2].
Com cerca de 160 mil espécies descritas [3], o que as torna a segunda maior ordem dentre todos os insetos, perdendo apenas para os besouros (Coleoptera), os lepidópteros são diversificados e encontrados em distintos ambientes. Até mesmo em habitat aquáticos. Sim, a mega diversa ordem dos lepidópteros realizou, em diferentes momentos de sua evolução, retornos secundários ao ambiente aquático, todos eles relativos às mariposas. Sendo o grupo primariamente terrestre, a existência de espécies perfeitamente adaptadas aos ambientes aquáticos causa surpresa até mesmo para muitos entomólogos [4].
Especialmente as lagartas vivem com grande desenvoltura nos corpos de água doce, tanto os de água rápida (ambientes lóticos – rios, riachos, córregos) quanto de água parada (ambientes lênticos – lagos, brejos e poças), em alguns casos retirando oxigênio diretamente da água por meio de brânquias. Nem essas brânquias das lagartas e nem as já mencionadas escamas dos adultos são parecidas com as estruturas de mesmo nome presentes nos peixes. Mas foram responsáveis pela provocação no início deste artigo.
O fato é que, embora as mariposas não sejam normalmente consideradas entre os mais destacados habitantes de ecossistemas de água doce, algumas espécies são verdadeiramente bem adaptadas. Recentemente, atenção vem sendo voltada a determinadas espécies que se desenvolvem em plantas aquáticas, não só pelo dano potencial causado àquelas com interesse econômico, como também pela possibilidade de controle da proliferação de vegetais daninhos [5]. Apesar disso, os grupos de mariposas aquáticas ainda são pouco estudados, tanto em termos de taxonomia quanto ecologia [6]. No Brasil, sete são as famílias de lepidópteros com representantes aquáticos, Nepticulidae, Coleophoridae, Tortricidae, Cosmopterigidae, Noctuidae, Pyralidae e Crambidae [7], sendo a última, de longe, a mais destacada.
A família Crambidae tem ampla área de distribuição geográfica, contando com 15 subfamílias e mais de 600 espécies descritas. Na América do Sul estão presentes as subfamílias Schoenobiinae, Crambinae, Pyraustinae e Acentropinae [8]. A subfamília Acentropinae inclui os ninfulíneos, que já foram classificados como uma subfamília à parte (os Nymphulinae), e apresentam as espécies de maior sucesso na colonização dos ambientes de água doce. Amplamente distribuídos pela América do Sul [9], essa subfamília apresenta mais de 200 espécies na região, sendo cerca de 50 no Brasil [8].
Os adultos dos ninfulíneos são mariposas pequenas, geralmente medindo cerca de um centímetro de comprimento, e apresentam padrões de coloração distintos, com predomínio de tons castanhos, amarelos e dourados, com manchas castanho-escuras a negras e áreas prateadas (foto do alto). Vivem nas proximidades das plantas aquáticas, onde geralmente colocam os ovos. As lagartas são verdadeiramente aquáticas, geralmente se alimentando de folhas das plantas emergentes ou flutuantes. As espécies são divididas em duas tribos, Nymphulini e Argyractini, que ocupam hábitat distintos.
Os ninfulíneos da tribo Nymphulini estão geralmente associados a ambientes lênticos ou a áreas marginais de rios, sempre relacionados a plantas aquáticas, das quais as lagartas se alimentam e retiram pedaços, unidos com seda, para a elaboração de casulos (foto acima). Em alguns gêneros, como Elophila Hübner, 1822, e Synclita Lederer, 1863, as lagartas são lisas, com poucas cerdas e sem ornamentações [10]. Em outros, porém, estão presentes brânquias traqueais ramificadas (foto abaixo). É exatamente o caso do gênero Parapoynx Hübner, 1825 [11], bastante distribuído pelo Brasil.
Os ninfulíneos da tribo Argyractini colonizam ambientes de água mais rápida. As lagartas apresentam brânquias traqueais filamentosas e muitas vivem sobre rochas, bem no filme de água das corredeiras, usando casulos de seda e material vegetal como abrigo, onde se alimentam de algas.
Como ocorre com todos os lepidópteros – na verdade, como ocorre com a maioria dos insetos – a identificação e separação das espécies é, em grande parte, baseada nos indivíduos adultos, quase sempre do sexo masculino [12]. No caso dessas mariposas aquáticas, para se fazer a correta identificação das lagartas, elas devem ser associadas aos adultos, o que só se consegue por meio de criação. Os Nymphulini, por serem de água parada, ainda apresentam possibilidades de criação em laboratório, pois é mais fácil reproduzir as condições ambientais. Já as lagartas de Argyractini são muito difíceis de se criar, o que atrapalha demais as identificações, fazendo com que o grupo seja muito pouco conhecido.
Do ponto de vista econômico, algumas lagartas de ninfulíneos são consideradas pragas de cultivos alagados, especialmente o arroz [13]. No Brasil, elas são chamadas de lagartas-boiadeiras, causando danos às plantações especialmente na Região Sul [14].
Face ao pouco conhecimento geral que se tem a respeito das mariposas aquáticas, não há dados robustos acerca de seu status de conservação. No entanto, a espécie Parapoynx restingalis Da-Silva & Nessimian, 1990, conhecida de umas poucas áreas de restinga na faixa litorânea entre o Rio de Janeiro e o sul da Bahia, é considerada em situação vulnerável. Isso se dá devido à destruição do habitat, em áreas de grande expansão imobiliária [15]. Parece claro que as medidas mais efetivas para a conservação dessa e das demais espécies de mariposas aquáticas são a conservação dos habitat de ocorrência, aliada à realização de pesquisa científica básica de taxonomia, biologia e ecologia, e de trabalhos de campo que esclareçam sua real distribuição geográfica.
Referências:
[1] Robinson, W. Urban insects and arachnids – A handbook of urban entomology. Cambridge University Press, Cambridge.
[2] Gallo, D. et al. 2002. Entomologia agrícola. ESALQ/USP, Piracicaba.
[3] Heppner, J.B. 1991. Faunal regions and the diversity of Lepidoptera. Tropical Lepidoptera 2(1): 1-85.
[4] Mey, W. & Speidel, W. 2008. Global diversity of butterflies (Lepidoptera) in freshwater. Hydrobiologia 595: 521–528.
[5] Romero, F. & Navarro, F. 2009. Lepidoptera. In: Dominguez, E. & Fernandez, H.R. (ed.). Macroinvertebrados bentónicos sudamericanos. Sistematica y biología. Fundación Miguel Lillo, Tucuman.
[6] Mey, W. & Speidel, W. 2008. Global diversity of butterflies (Lepidoptera) in freshwater. Hydrobiologia 595: 521–528.
[7] Nessimian et al., 2019. Ordem Lepidoptera. In: Hamada, N. et al. (ed.). Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. INPA, Manaus.
[8] Romero, F. & Navarro, F. 2009. Lepidoptera. In: Dominguez, E. & Fernandez, H.R. (ed.) Macroinvertebrados bentónicos sudamericanos. Sistematica y biología. Fundación Miguel Lillo, Tucuman.
[9] Lange, W.H. 1996. Aquatic and semiaquatic Lepidoptera. In: Merritt, R.W. & Cummins, K.W. (ed.). An introduction to the aquatic insects of North America – 3a. edição. Kendall/Hunt Publishing Company, Dubuque.
[10] Da-Silva, E.R. & Nessimian, J.L. 1991. Descrição das formas imaturas de Synclita gurgitalis Lederer, 1863 (Lepidoptera: Pyralidae: Nymphulinae), com notas biológicas. Revista Brasileira de Biologia 51(1): 153-158.
[11] Nessimian, J.L. & Da-Silva, E.R. 1994. Descrição das formas imaturas de Parapoynx restingalis Da-Silva e Nessimian, 1990 (Pyralidae: Nymphulinae), com notas biológicas. Revista Brasileira de Biologia 54: 600-610.
[12] Da-Silva, E.R. & Nessimian, J.L. 1990. A new species of the genus Parapoynx Hübner, 1826 (Lepidoptera: Pyralidae: Nymphulinae) from Rio de Janeiro State, Brazil. Revista Brasileira de Biologia 50(2): 491-495.
[13] https://www.yourarticlelibrary.com/zoology/rice-caseworm-nymphula-depunctalis-life-cycle-nature-and-distribution/23855
[14] https://publicacoes.epagri.sc.gov.br/index.php/BT/article/viewFile/426/321
[15] https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/docs-pan/pan-lepidopteros/1-ciclo/pan-lepidopteros-livro.pdf
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