Em artigo publicado recentemente no American Journal of Biological Anthropology, o primatólogo Tiago Falótico e o etólogo Eduardo Ottoni correlacionam a diversidade no uso de ferramentas à terrestrialidade em um grupo de macacos que habita a Serra da Capivara (PI). Segundo Falótico, o grupo é bastante peculiar e faz uso de ferramentas como nenhum outro observado antes.
Mensuramos que os macacos-prego do Parque Nacional da Serra da Capivara passam 41% do tempo no chão, o que é uma taxa altíssima. Os macacos neotropicais são quase todos arborícolas, então há poucos relatos sobre esse tema. A literatura aponta que primatas neotropicais passam normalmente menos de 1% do tempo no chão. Agora, há esses macacos de Cerrado e Caatinga que ficam muito tempo no chão. E eles eram pouco estudados”, resume Falótico, que é pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).
Ele explica que o contexto do uso de ferramentas é bastante diverso nesse grupo em relação a outros, como o da Fazenda Boa Vista, também no Piauí. “Lá na Boa Vista, eles só usam as ferramentas para quebrar cocos. Mas passam, em média, 27% do tempo no chão, o que já é bastante para esses primatas. Na Serra da Capivara, eles quebram cocos, sementes e escavam com as ferramentas de pedra em busca de alimentos, como aranhas, batatinhas e raízes. Também batem pedras para comunicar agressão, como forma de ameaça.”
Em outro trabalho, publicado em 2013, a dupla de cientistas já havia demonstrado que as fêmeas desse grupo específico da Serra da Capivara tinham até mesmo incorporado um novo comportamento para “exibição sexual”, utilizando pedrinhas. “Elas jogam pedrinhas nos machos para chamar a atenção. Nos macacos-prego, as fêmeas, quando entram no cio, adotam comportamentos como vocalizações e expressões faciais para chamar a atenção do macho. Nesse grupo, percebemos o comportamento inovador de jogar as pedrinhas.”
Ele afirma que a correlação entre a terrestrialidade e o uso de ferramentas era uma hipótese.
Os macacos-prego de algumas populações usam ferramentas porque têm necessidade. Têm pouca comida e precisam usar ferramentas. Nós e outros grupos já havíamos demonstrado a ‘hipótese da oportunidade’: quando eles têm o recurso [as pedras e o alimento] disponível, eles começam a usar ferramentas e as usam mais. Neste último trabalho, o que eu queria mostrar é se essa população, que tinha diversidade maior de ferramentas, era também mais terrestre. E a comparei com a da Fazenda Boa Vista, que fica no mesmo Estado. As duas populações usam ferramentas, mas a da Serra da Capivara usa uma diversidade muito maior.”
O que leva macacos-prego a inovar
Segundo o primatólogo, quanto mais tempo os macacos passam no chão, há mais oportunidade de ter acesso ao recurso, até o ponto de inovar, como no caso das fêmeas que arremessam pedrinhas. “É preciso estar no chão um bom período para ter tempo de inovar, o que esse grupo da Serra fez, inclusive, com ferramentas para cavar.”
Ainda de acordo com ele, a terrestrialidade não é o único fator que influencia o uso de maior diversidade de ferramentas. “A disponibilidade do recurso é outro fator. A Fazenda Boa Vista tem menos recurso lítico, então pode ser que isso influencie também. Mas, por outro lado, sabemos que um fator que limita o uso de ferramentas de pedra é o tamanho. A Fazenda Boa Vista tem pedras grandes, pois os macacos ali quebram cocos grandes. Ora, se tem pedra grande, tem pequena também. Mas, eles não as usam para cavar, como os da Serra da Capivara.”
Para chegar à taxa de uso do solo pelos macacos-prego, os cientistas usaram uma amostragem de varredura. “Seguimos o grupo durante dois anos, praticamente todos os dias. Eram 30 a 40 indivíduos, metade adultos e metade imaturos. A cada 20 minutos, tomávamos nota das atividades de todos. É uma metodologia básica para estudo de comportamento de animais sociais, que vivem em grupo. Além do uso de ferramentas, eu estava prestando atenção ao que estavam comendo, se estavam fazendo grooming [catação] ou se deslocando. Incluí ainda na observação o local em que eles estavam [altura do chão]. Nesse caso, para ver o estrato do espaço que estavam utilizando. Tenho esses dados agrupados por estação: chuvosa e seca. E por indivíduo: adulto, juvenil, macho e fêmea.”
Falótico afirma que uma hipótese descrita na literatura científica – de que as fêmeas teriam aversão a risco e iriam menos para o chão – não foi confirmada pela dupla que assina o trabalho. “Não percebemos diferenças de sexo na ida para o solo. Há diferença, mas pouca, quando se compara o tempo que o grupo, no geral, passou no chão (41%) e o tempo em que apenas os indivíduos adultos passaram no chão (43%).”
O trabalho foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio de uma bolsa de doutorado no Brasil, de um Auxílio à Pesquisa Regular e de um Auxílio à Pesquisa Jovens Pesquisadores.
O primatólogo adianta que, em um futuro trabalho, pretende-se verificar se uma terceira população encaixa-se nessa hipótese da correlação entre a terrestrialidade e a diversidade de uso de ferramentas. “É uma população do Ceará, do Parque Nacional de Ubajara, que estamos estudando. Também nos interessa a influência da terrestrialidade no uso de ferramentas, inclusive a ideia de percepção de risco no solo. Tentar perceber a resposta deles ao que percebem como risco, se os macacos estão mais atentos a possíveis perigos quando estão no solo.”
O cuidado dos macacos-prego com filhote com deficiência
O trabalho com a população do Parque de Ubajara gerou um segundo artigo, publicado na revista Primates e assinado por Tatiane Valença, mestre em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com Falótico. O artigo descreve a vida e a morte de um macaco infante que, por conta de uma deficiência na perna, viveu apenas dois meses. E mostra que a terrestrialidade pode influenciar, inclusive, o comportamento dos macacos- prego em relação a indivíduos deficientes.
Nossa contribuição maior, nesse caso, foi saber como a fêmea lida com esse indivíduo que está se comportando de modo diferente. Os cuidados com o filhote deficiente antes da morte ainda não estavam descritos na literatura. Trata-se de um relato pioneiro para macacos-prego. De forma geral, esses cuidados não diferem muito do repertório já conhecido, mas houve alguns ajustes, porque o filhote apresentava uma instabilidade na posição em que ficava, nas costas da mãe. Como ele não conseguia se agarrar como os outros, a mãe aumentou a frequência de ajuste do filhote nas costas. Ajustar a posição do filhote é um comportamento normal, mas, nesse caso, ela fez isso mais vezes. Um macho adulto que também carregou esse filhote deficiente algumas vezes aumentou igualmente a frequência de ajuste”, relata Valença.
Ela ressalta que a novidade é a hipótese de que a terrestrealidade possa ter influenciado a evolução do comportamento (ou dos cuidados) com indivíduos deficientes. “A hipótese de a arborealidade dificultar o carregamento de indivíduos mortos tinha sido proposta na literatura. Mas a hipótese de que isso poderia afetar o cuidado com indivíduos deficientes é algo que estamos propondo agora, a partir do que observamos.” O trabalho também foi apoiado pela Fapesp.
Valença lembra que o carregamento da cria depois de morta é comum. “Normalmente, esse vínculo de carregar e fazer catação se mantém depois da morte do filhote. Quanto tempo isso dura é que varia. Ela carregou o corpo por horas e não forrageou nada durante esse tempo, além de moscas que estavam no corpo. Não foi atrás de frutos, nem invertebrados e não estava se alimentando. Carregou um corpo com 14% do peso dela por mais de um quilômetro.”
O comportamento, porém, é mais extensamente observado em primatas terrestres, como os chimpanzés ou os Macaca fascicularis (ou macaco-cinomolgo). “Tem as que largam depois de algumas horas, tem as que carregam por dias. Há casos extremos até, de chimpanzés, que carregam por meses um filhote morto.”
No caso do macaco-prego, um outro cuidado que a fêmea tomou, e que não passou despercebido pelos pesquisadores, foi usar a cauda para segurar o filhote na hora de quebrar cocos. “Geralmente, para se estabilizar durante a atividade, eles costumam colocar a cauda no chão ou agarrar com a cauda na árvore, porque quebrar um coco com uma pedra é um comportamento que exige uma manipulação muito fina, e força. Essa fêmea, às vezes, levantava a cauda e nós achamos que era para poder segurar o filhote, porque ele ficava muito instável especialmente nesses momentos de quebra de coco. E ela, sem o uso da cauda para se estabilizar, não estava tão apoiada quanto poderia.”
“Nessa terceira população, do parque de Ubajara, há muita pedra no chão e vai ser muito interessante poder comparar com a Serra da Capivara, porque vamos conseguir controlar a variável ‘disponibilidade de recursos líticos’”, adianta Falótico.