Lagarto do Cretáceo brasileiro revela história dos répteis escamados

A descrição de uma nova espécie é importante para entender como o grupo dos répteis escamados estava distribuído no Cretáceo Inferior.

Thiago Mariani

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas, mestre em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira, usando particularmente morfologia comparada e morfometria em ossos do crânio e nas vértebras do pescoço. Gosta de estudar ossos dos fósseis, mas não deixa de olhar os ossos das espécies viventes; buscando sempre entender como as características ósseas estão conectadas com os hábitos de vida e evolutivos das espécies (e vice-versa).
É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da UFV, onde desenvolve suas pesquisas e participa da formação de recursos humanos. Também é colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional (MN).
Para variar, adora os filmes do Jurassic Park. É apreciador de café, basquete e metal – especialmente das bandas brasileiras (Sugestões? Só falar!).

19 de abril de 2024

FAUNA NEWS Lagarto do Cretáceo brasileiro revela história dos répteis escamados

Um dos grupos vertebrados mais diversos hoje em dia são os répteis escamados, chamados de Squamata. Essa linhagem é antiga (pelo menos do Jurássico Médio, entre 174-161 milhões de anos) e é representada por lagartos, serpentes, iguanas, anfisbênas (ou cobras de duas cabeças) e as lagartixas (iguais àquelas da parede das casas que comem mosquitinhos e aranhas). No nosso país, existem muitas espécies desse grupo, sendo considerado um dos países mais diversos do mundo.

Olhar para o momento atual e identificar espécies facilita muito para dizer algo sobre a diversidade desse grupo, porque conseguimos ver o que vive no ambiente. Mas olhar para o passado e dizer algo parecido é complicado, porque dependemos quase que exclusivamente do que o registro fóssil nos permite dizer, isto é, das partes corporais que se preservam nas rochas que encontramos, resultado de uma infinidade de circunstâncias bióticas e abióticas. E quanto menor o animal, menos provável é que alguma parte dele seja preservada.

Felizmente, alguns restos fossilizados de um lagartinho foram encontrados no Brasil, na região de João Pinheiro, em Minas Gerais. Os fósseis estavam em rochas da formação Quiricó, da bacia sanfranciscana, formadas em um ambiente lacustre e raso, entre aproximadamente 132,6 e 139,8 milhões de anos, no período Cretáceo Inferior.

Esses restos foram descritos como a espécie Neokotus sanfranciscanus, em alusão à novidade e ineditismo do fóssil e à bacia sedimentar onde foi encontrado. Os restos fossilizados eram de partes da cabeça, algumas vértebras e ossos dos membros traseiros.

FAUNA NEWS O lagarto do Cretáceo brasileiro que nos diz muito sobre a história dos répteis escamados — Alguns restos fósseis do Neokotus sanfranciscanus, com partes do crânio, como pré-maxila (A-E) e maxila (F-I), e da mandíbula, como o dentário e esplenial (K-N). Detalhes dos dentes (O-Q) também puderam ser ilustrados – Imagem: Bittencourt et al., 2020

Esses restos ósseos permitiram que características anatômicas fossem observadas e codificadas em um conjunto de dados com várias outras características de outros animais, a maioria répteis de um grupo chamado Lepidosauria, ao qual os répteis Squamata fazem parte. Esse conjunto de características e espécies foi analisado por meio da sistemática filogenética para encontrar a posição do novo fóssil dentro desse grande grupo. Como resultado, o Neokotus sanfranciscanus foi classificado como membro de uma família chamada Paramacellodidae e representou o primeiro registro desse grupo na América do Sul.

A descrição de uma nova espécie tem importância para muito além do país e da localidade (a bacia sedimentar e município). Esses restos fósseis também são importantes para se entender como o grupo dos répteis escamados estava distribuído pelos continentes no Cretáceo Inferior, uma época em que os continentes do norte (Laurásia) e do sul (Gondwana) ainda estavam unidos e/ou muito próximos entre si, e em épocas anteriores – como no Jurássico –, e posteriores – como no Cretáceo Superior. Para começar, o Neokotus sanfranciscanus é a primeira documentação de uma espécie da família em um continente do sul. Como as outras são todas do hemisfério norte, a espécie brasileira é uma ligação evolutiva com elas e levanta a questão da possibilidade de uma conexão geográfica pretérita entre as regiões muito distantes. Essa ligação indica que os répteis escamados estavam na América do Sul muito antes do que se tinha de evidência.

Relações biogeográficas entre as linhagens de Squamata

A conexão entre membros dessa família levou os autores a inspecionarem a mesma pergunta – será que pode ter havido conexões geográficas entre elas ao longo do Cretáceo? – para outras linhagens de Squamata. Isso é importante, pois conexões similares que ocorrem em linhagens diferentes fortalecem hipóteses de padrões biogeográficos entre regiões e ajudam a entender a distribuição e evolução dos ambientes e sua biota. E voilà! Outros grupos de répteis escamados (Acrodonta, Pleurodonta, Madtosoiidae) também estavam presentes nos dois hemisférios do planeta durante o Cretáceo, sugerindo que esses grupos ainda não eram tão especializados aos ecossistemas regionais da época – uma situação oposta à de atualmente, na qual o grupo é muito diversificado e especializado a viver em diversos ambientes.

Por fim, isso acaba indicando dois cenários igualmente plausíveis podem ter acontecido para explicar a distribuição dos Squamata: ou (1) havia “pontes”, ou conexões, entre as áreas biogeográficas que permitiram a passagem de animais, ou (2) a distribuição observada (e distante entre si) foi um consequência de uma fauna amplamente distribuída por uma área muito grande (nesse caso, pelos dois hemisférios) que sofreu eventos de extinção e os animais restantes ficaram restritos a áreas específicas com condições de sobrevivência.

A distribuição da família em questão (Paramacellodidae), pelo menos, pode ter sofrido, em grande medida, eventos de extinção de ancestrais com ampla distribuição, porque o registro fóssil é antigo e as estimativas de idade da linhagem indicam origem no Jurássico. Vejam, portanto, mais uma vez, como que os fósseis brasileiros ajudam a responder perguntas mais amplas sobre a história do nosso país e do planeta, de animais que comumente passam pela nossa frente todos os dias.

Referência

Bittencourt JS, Simões TR, Caldwell MW, Langer MC. 2020. Discovery of the oldest South American fossil lizard illustrates the cosmopolitanism of early South American squamates. Communications Biology 3:201

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Sobre o autor / Thiago Mariani

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas, mestre em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira, usando particularmente morfologia comparada e morfometria em ossos do […]