
Análise de Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
O caso abaixo ilustra muito bem o que realmente a sociedade brasileira considera ser crime:
“A Polícia Militar de Mimoso do Sul prendeu na tarde de quinta-feira (7) um rapaz suspeito de ter pulado o muro de uma casa para roubar um trinca-ferro de 6 anos. Ele foi preso e confessou o crime. Já o dono da ave ficou sem o passarinho por se tratar de um animal silvestre e não ter registro em órgão ambiental competente.
A ave pertencia a um gerente comercial de 31 anos. Segundo ele, o ladrão entrou em sua casa, no bairro Itapoã, e roubou o pássaro, que estava numa gaiola pendurada na varanda. No momento da invasão, a mãe e a sobrinha dele estavam na residência.
“Um vizinho me ligou, avisando. O cara pulou o muro e entrou na minha casa pra roubar o pássaro. Tenho essa ave há cerca de 6 anos. Logo que soube, estive na minha casa e depois procurei uma viatura da Polícia Militar na rua. Os policiais fizeram buscas e conseguiram prender o rapaz”, contou o gerente comercial, que admitiu não ter o registro da ave silvestre junto aos órgãos ambientais.
Ave valorizada
O trinca-ferro é um pássaro altamente valorizado por criadores e também é alvo constante de contrabandistas de animais silvestres. Para a criação em cativeiro é preciso autorização especial do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Ao ser preso, o rapaz disse à polícia que tinha vendido o passarinho por R$ 30 para um morador do bairro Morro da Palha. A polícia encontrou a ave na casa dessa pessoa, sem anilha, do lado de fora do imóvel. Os policiais só encontraram o suposto comprador minutos depois, perto do INSS. Ao ser questionado, disse que o rapaz havia trazido o trinca-ferro e pedido a ele para que guardasse, pois não tinha um lugar para deixá-lo.
O comprador da ave, o rapaz suspeito de roubo e o gerente comercial foram ouvidos na Delegacia de Mimoso do Sul e a ocorrência foi finalizada na Delegacia Regional de Cachoeiro de Itapemirim.
Furto qualificado
De acordo com o delegado Rômulo Carvalho Neto, titular da Delegacia de Mimoso do Sul, o rapaz que roubou a ave foi autuado por furto qualificado mediante escalada e encaminhado ao presídio.
Já o morador que comprou o trinca-ferro vai responder por crime de receptação culposa. Ele assinou um termo de compromisso e foi liberado.
“Como a ave não tem registro, a vítima vai responder também a um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) pela prática de crime ambiental, e a ave vai ser encaminhada ao Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) para poder ser solta na natureza”, explicou o delegado.” – matéria “Ave silvestre é roubada, vendida e resgatada pela polícia de Mimoso do Sul”, publicada em 8 de janeiro de 2021 no site do jornal Dia a Dia (ES)
Temos aí três condutas criminosas sendo analisadas pela Polícia.
Crime 1: o gerente comercial comprou de um traficante de animais ou capturou na natureza o trinca-ferro para criar a ave como bicho de estimação. No caso, ele estava criando ilegalmente uma ave silvestre.
Crime 2: o sujeito que invadiu a residência do gerente comercial e furou a ave.
Crime 3: o sujeito que comprou a ave furtada do ladrão que invadiu a residência do gerente comercial. Ele está sendo investigado pela prática de receptação culposa (sem intenção).
Das três ações criminosas, qual dos envolvidos fica preso? O que é chamado na matéria de “ladrão”, bandido que comete um crime contra o patrimônio de alguém. Já o gerente comercial que responde por crime contra a fauna, que tem repercussões na vida de um animal e na conservação da biodiversidade, está solto e provavelmente fará um acordo com o Ministério Público (transação penal) para, pagando uma multa ou realizando trabalho comunitário, não ser processado judicialmente. A cultura do criar animal silvestre como bicho de estimação está tão arraigada nele (e na sociedade), que ele sequer pensou na possibilidade de ser responsabilizado criminalmente por ter um animal ilegal!
O sujeito do “crime 3” alega que só guardou a ave, mas a polícia vê indícios de receptação culposa. Ele pode ter sido ingênuo de acreditar no ladrão e aceitou guardá-la, mas com certeza sabia que a ave era ilegal. Ou realmente comprou o pássaro…
Ou seja, não tem santo na história. Mas chama a atenção que a vida dos animais e o equilíbrio dos ecossistemas é menos importante que o patrimônio – no caso, a ave.
Considerado bem do Estado ou bem particular, o trinca-ferro é a grande vítima e continua sem ter sua liberdade.