Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Conforme já é tradicional, em agosto, o famoso “mês do desgosto” ou, como é dito nas redes sociais, o “mês que nunca acaba”, dedico este espaço ao folclore brasileiro. Isso porque em 22 de agosto é comemorado, no Brasil, o Dia do Folclore. Nada mais justo do que homenagear então o Mês do Folclore, época em que museus e outras casas culturais organizam atividades festivas em exaltação à cultura popular.
Fica aqui o convite para que você revisite os artigos sobre o tema, relativos aos anos de 2020 [1] e 2021 [2]. Vale a ressalva que estou usando aqui a definição de folclore no sentido de cultura popular [3] ou, em uma das muitas definições dadas pelo célebre Luís da Câmara Cascudo, o maior folclorista brasileiro, “sabedoria do povo” [4].
Como acontece com qualquer manifestação cultural, o folclore é repleto de bichos, sendo um delicioso tema a ser abordado dentro dos preceitos da Zoologia Cultural. E isso, naturalmente, inclui os insetos.
Além do enciclopédico Dicionário do folclore brasileiro [5], de autoria do já mencionado Cascudo, dois outros livros são muito importantes para quem quiser percorrer o riquíssimo caminho das menções folclóricas aos nossos insetos: Curiosidades folclóricas sobre insetos [6], de Hitoshi Nomura, e Insetos no folclore [7], de Karol Lenko e Nelson Papavero. É com base nessas obras fundamentais que está, em grande parte, construído o presente artigo. A boa notícia é que o livro de Nomura pode ser baixado a partir do site do Museu do Folclore de São José dos Campos, SP. O dicionário de Cascudo, algumas vezes reeditado, pode ser encontrado em muitas livrarias. Já a incrível obra de Lenko e Papavero, está esgotada, mas pode ser obtida em livrarias que vendem livros usados, popularmente denominadas “sebos”, tanto os presenciais quanto os virtuais. Aos que não conseguirem, vale muito à pena uma ouvida no podcast “Insetos, folclore e curiosidades” [8], em que a professora Maria Inês Passos, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), narra diversos capítulos do livro de Lenko e Papavero.
Abordarei hoje insetos de grande importância econômica e cultural, que até pouquíssimo tempo estavam classificados em uma ordem própria (Isoptera), mas que atualmente foram incorporados à ordem das baratas (Blattodea). Cupins constituem um grupo com cerca de 2.800 espécies descritas, famoso pelos prejuízos econômicos que causa como praga urbana ou agrícola, ainda que isso se aplique apenas à 10% das espécies conhecidas [9]. São insetos hemimetábolos, ou seja, passam por uma metamorfose incompleta ao longo de seu desenvolvimento, tendo ninfas como formas juvenis. Insetos mastigadores, seu aparelho bucal apresenta mandíbulas bem desenvolvidas. São notórios insetos sociais, possuindo castas estéreis (soldados e operários), além do casal reprodutor, rei e rainha [6] [10].
O termo cupim é originado do tupi kopi’i, idioma que também dá origem a outro nome usado no Brasil, itapicuim, que provém da junção de i’tá (pedra) e piku’i (macio por dentro). Outro nome comum usado por aqui, térmite, é originário do latim tarmite (verme) [11]. Os ninhos, que podem ser feitos de uma pasta de terra, fragmentos de madeira, excrementos e saliva [10], costumam ser chamados de cupinzeiros, termiteiros, cupins (isso mesmo, o próprio nome do inseto) ou murundus (do quimbundo mulundu, morro, monte). Para dispersão e fundação de novas colônias, podem ocorrem revoadas de exemplares alados, popularmente conhecidas como aleluias [11], sendo esses cupins chamados de bichinhos-de-chuva, por voarem frequentemente após um dia quente e chuvoso, e bichinhos-de-luz, por serem atraídos pelas luzes artificiais. Já foi aqui neste espaço mencionada sua presença frequente em jogos de futebol noturnos [12].
Como acontece com muitos insetos [13], os cupins cedem por empréstimo seu nome comum para uso em muitas expressões e denominações do nosso idioma. Durante o movimento abolicionista, no século XIX, existia uma organização secreta chamada Clube do Cupim, sendo as sedes onde ocorriam as reuniões chamadas de Panela do Cupim; nessas reuniões eram planejadas medidas e ações libertárias [7] – a alusão aos cupins deve ter a ver com a atividade escondida desses insetos, que destroem alicerces e abalam estruturas por dentro, sem serem percebidos.
Dentro dessa mesma percepção, mas com conotação negativa, está a expressão “espiritualidade do cupim”, utilizada pelo Papa Francisco para execrar as fofocas e “panelinhas” dentro da Igreja Católica, que, segundo o sumo pontífice, minariam a fé [14]. Cupim também é nome dado ao cabelo crespo [15] e a um corte de carne bovina, a corcova, especialmente nos zebus [16]. Em algumas localidades da Amazônia, a expressão “roer o cupim” significa desvirginar uma moça [7]. Sim, conhecendo o folclore brasileiro, reflexo direto de nossa sociedade, seria pedir demais inventariar a presença do cupim na cultura popular sem se deparar com algum preconceito…
Dentro das adivinhações e pegadinhas, o cupim também marca presença. Baseado no fato de tanto o bicho quanto o ninho receberem o mesmo nome, ao menos em alguns lugares, é perguntado: “o que é, o que é, o nome da casa é o dono da casa?” Mas vale a ressalva que, no interior do estado de São Paulo, o ninho é chamado de cupim só quando tem o bicho. Quando já foi abandonado, é tucuruva. Que, por sinal, pode ser usado como fogão improvisado [7] [17].
Cupins também estão presentes nas predições supersticiosas. Já mencionei aqui que sua presença na cumieira de uma casa indicaria a morte do dono em breve [2]. E, para se salvar, nada é mais natural do que ele retirar de lá os pequenos invasores. Mas se o ninho voltar, o melhor mesmo que o dono tem a fazer é, pelo sim, pelo não, se mudar de casa [7]. Também não é muito bacana, segundo se diz, escutar o barulhinho que os cupins fazem enquanto se movimentam dentro da madeira, especialmente à noite; isso indicaria a morte de um dos moradores humanos [18]. Essa conotação negativa é transferida aos sonhos, que, quando incluem cupins, são considerados de mau presságio [19].
Para o bem e para o mal, há algumas simpatias e mandingas que incluem cupins em suas formulações. Como a que sugere que recolher a terra do rastro de uma pessoa, enrolar em um pano e colocar no cupinzeiro seria uma feitiçaria com efeito fatal para o infeliz; versão mais simples, mas igualmente eficaz, seria colocar o cabelo de alguém dentro do cupinzeiro. Uma simpatia contada em Mato Grosso diz que, para acabar com um temporal, bastaria tacar fogo em um cupinzeiro, o que talvez não seja tão fácil, especialmente se estiver chovendo. Porém, para se parar a chuva, bastaria jogar um pedaço do cupinzeiro no chão e logo os cupins se espalharão, chorando e rezando para que o sol apareça. Isso é bem interessante, pois advém do fato de muitas espécies lançarem jatos de defesa contra invasores, especialmente formigas [7].
Os cupins também teriam serventia na chamada terapêutica popular, com chás ou misturas usando esses insetos, ou mesmo pedaços do cupinzeiro, para curar ou amenizar bronquite, coqueluche, resfriados e gripes, hemorragias e feridas diversas, mordida de cachorro, bócio, picada de cobra ou escorpião, pneumonia, prisão de ventre, hérnia, reumatismo, sarampo, umbigo estufado, dentre outros problemas [7] [20]. Entre os indígenas Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, é dito que se o xamã invocar os cupins, eles passam a ter propriedades curativas [7].
Como o Homo sapiens é bicho onívoro e que já comeu de um tudo ao longo de sua evolução, não é de se surpreender que os cupins frequentem nosso cardápio. Quando estão sem opções melhores, os Macu, da Amazônia, comem cupins torrados e embrulhados em folhas de bananeira, após secarem no moquém (tipo de grelha de madeira) [7]. Outros povos ao longo do Rio Negro preferem consumi-los assados em folhas de sororoca, arbusto da mesma família da bananeira [6]. Porém, no quesito bizarrice gastronômica pouca gente vai superar os Uaicá, do Acre, que comem não só o cupim, mas também o cupinzeiro [7].
Talvez as mais interessantes manifestações folclóricas relativas aos cupins sejam os contos e crendices, alguns deles narrados por Lenko e Papavero [7]. Causo bastante bizarro foi publicado em um jornal de comércio do interior paulista e está relacionado a uma das mais estranhas narrativas do folclore, a que diz que serpentes se alimentam do leite de mamíferos, incluindo as mulheres humanas. Algo impossível de acontecer à luz do conhecimento científico, mas que está bem consolidado no imaginário popular, ao ponto de eu ter escutado essas estórias na minha infância, contadas pelas matriarcas da família, no Rio de Janeiro. Décadas mais tarde, minha esposa e eu, em trabalho de campo no Vale do Paraíba paulista, escutamos a mesma narrativa. Em um dos vídeos do excelente canal Papo de Cobra [21] é mostrado que essa bizarra associação narrativa entre cobras e leite é também presente em Portugal. Pois bem, segundo relatado em 1963, dizem que quando os cupins abandonam o cupinzeiro, as cobras sobem nele e atraem vacas, das quais mamam o leite. Ainda segundo a narrativa, as vacas parecem gostar da situação.
Na Bahia, uma lenda muito interessante é relacionada ao Quibungo, personagem folclórico que representa um tipo de bicho papão de origem africana [5]. Diz a narrativa que uma aranha caranguejeira prendeu o monstro, amarrando-o com cipós a um toco de árvore. Desesperado, o Quibungo clamou por ajuda, tendo sido acudido pelos cupins, que roeram os cipós [7].
Outro conto diz que uma moça teve que se casar com certo rapaz, do qual ela não gostava. À noite, quando o marido ia se deitar e tentava abraçar a esposa, ela descia da rede e ficava de costas. Para ver se, aos poucos, ela ia se acostumando com a vida de casada e com o marido, o pai da moça convidou o genro para caçarem no mato, levando-a junto. Mas ela continuava a não querer dormir com o marido. O pai, então, teve uma ideia: capturou alguns vagalumes e, sem que a filha percebesse, pregou muitos deles em um cupinzeiro, isso ainda de dia. Depois, amarrou a rede da filha bem perto do cupinzeiro, com a rede do marido ficando do outro lado. Após o jantar, a moça foi dormir. Acordou no meio da noite, viu o cupinzeiro iluminado, se assustou e foi deitar com o marido [22].
Dando uma breve pausa neste folclore lúdico e, quase sempre, interiorano que guiou nossa conversa até agora, trago um relato da realidade urbana brasileira. Há poucos meses foi divulgada a prisão de cinco pessoas que cometiam um crime no mínimo inusitado, em Jundiaí (SP): o “golpe do cupim” [23]. Segundo a Polícia Civil, o grupo oferecia serviço de combate a cupins a preços menores que os da concorrência. Quando eram contratados por um perfil específico de cliente – idosos morando sozinhos -, os suspeitos soltavam mais cupins na casa e, alegando ser uma infestação de grandes proporções, cobravam valores exorbitantes. Da mesma forma que os grilos não merecem a associação com os grileiros [13], os cupins não merecem estar ligados a esse tipo de gente.
Para encerrar a conversa deste mês de modo um pouco mais leve e otimista, recorro à sabedoria popular de algumas cidades do interior paulista, onde é dito que os cupins, quando no seu voo nupcial, sinalizam no ar o caminho capaz de levar o ser humano à felicidade [24]. Novamente evocando Câmara Cascudo, que nos ensina que folclore é a real história do povo, faço uma ressalva mais do que necessária. Crendices, causos, terapêuticas populares e simpatias são narrativas culturais, devendo ser respeitadas e admiradas como tal. Ponto. Informação científica é outro departamento – e está tudo bem. Na real? Embora representem formas diferentes de se enxergar o mundo, uma sempre vai ter muito o que aprender com a outra.
Referências
[1] https://faunanews.com.br/2020/10/21/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento/
[2] https://faunanews.com.br/2021/08/18/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias/
[3] Brandão, Carlos Rodrigues. 1984. O que é folclore, 4ª edição. Editora Brasiliense
[4] Cascudo, Luís da Câmara. 1975. Contos tradicionais do Brasil. Edições de Ouro
[5] Cascudo, Luís da Câmara. 2012. Dicionário do folclore brasileiro. 12ª edição. Global Editora
[6] https://drive.google.com/file/d/13jGGKCyj_ZoRgNpBeUSpjK-pZxznSTvo/view
[7] Lenko, Karol & Papavero, Nelson. 1979. Insetos no folclore. Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas
[8] https://open.spotify.com/show/3SaVZwhd5FKHPK7idtgdIA
[9] Higashi, M. & Abe, T. 1997. Global diversification of termites driven by the evolution of symbiosis and sociality. In: Abe, T.; Levin, S.A. & Higashi, M. (ed.). Biodeversity – An ecological perspective. Springer-Verlag, p. 83-112.
[10] Bignell, D.E.; Roisin, Y. & Lo, N. 2011. Biology of termites: a modern synthesis. Springer
[11] Ferreira, A.B.H. 1986. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. Nova Fronteira
[12] https://faunanews.com.br/2021/06/16/tai-o-que-voce-queria-o-futebol-dos-insetos/
[13] https://faunanews.com.br/2021/07/21/na-boca-do-povo-os-insetos-nas-expressoes-populares/
[14] https://pt.aleteia.org/2022/01/17/papa-francisco-condena-enfaticamente-a-espiritualidade-do-cupim/
[15] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/cupim
[16] https://blogdacarne.com/cupim-de-boi-a-carne-que-divide-opinioes/
[17] https://www.chaocaipira.org.br/midia/fotos?pag=167
[18] Marques, L.A.A. 1926. O “cupim”, seus hábitos e os meios de combatê-los. Almanaque Agrícola Brasileiro 1926: 288
[19] https://guiaanimal.net/articles/505
[20] https://www.abq.org.br/cbq/2018/trabalhos/7/855-26342.html
[21] https://www.youtube.com/watch?v=fQDSVQwS4VY
[22] https://nuhtaradahab.wordpress.com/2009/09/02/lenda-indigena-o-cupim/
[23] https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2022/02/15/grupo-e-preso-suspeito-de-aplicar-golpe-do-cupim-em-idosos-da-regiao-de-jundiai.ghtml
[24] https://istoe.com.br/marielle-franco-e-os-cupins-alados/
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