Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Dando sequência à nossa conversa iniciada mês passado [1], vou convidar vocês para retornarmos ao ano anterior à chegada da pandemia de Covid-19 por aqui. Pandemia que, por sinal, ainda não acabou.
Aliás, um parêntese: a vacinação de crianças já está autorizada pela Anvisa. Segundo a Fiocruz, em números de hoje, morre uma criança brasileira por Covid-19 a cada dois dias. Isso é muita coisa, gente. Quando finalmente as autoridades se dignarem a disponibilizar vacinas para os mais novinhos, por favor, não deixem de levar seus filhos e filhas aos postos de vacinação. Ah, aliás II, a missão, pelo amor de todos os deuses e deusas não deixem de vacinar suas crianças contra poliomielite e outras doenças para as quais há vacinas disponíveis. O Brasil sempre foi modelo para o mundo em termos de campanhas de vacinação, mas, infelizmente, as taxas têm caído muito, o que faz com que doenças consideradas erradicadas estejam voltando.
Voltando à nossa conversa, a última vez que fui à cidade de São Paulo foi em 2019, quando, com muita felicidade, apresentei na Universidade de São Paulo (USP) um trabalho sobre a visão que se tem dos cientistas, com base nas histórias em quadrinhos. Para quem tiver curiosidade de ver, o resumo está aqui [2].
Pois bem, tendo chegado na rodoviária paulistana logo no início da manhã, tive um tempinho para brevemente “turistar” um pouco antes de ir à USP e resolvi conhecer o famoso Beco do Batman, na Vila Madalena. Cá entre nós, foi bem proveitoso, a ponto de me render a publicação de um artigo sobre os animais (incluindo alguns insetos) nas artes ali expostas. Possivelmente, no futuro, escreverei mais sobre isso. Para quem quiser se adiantar, o artigo pode ser acessado aqui [3].
Bom, peguei um Uber e rumei para o Beco do Batman. No caminho, fui trocando uma ideia com o motorista. Poucos dias antes, a imprensa em geral noticiou [4] um fato inusitado. Por influência da poluição local e das queimadas então ocorrentes na Amazônia, o céu de São Paulo escureceu – o dia virou noite! Curioso, perguntei ao camarada motorista como tinha sido a experiência. Ele falou que não tinha sido isso tudo. Tomei um susto:
– Como assim, amigo? Eu vi no noticiário, mostraram imagens da tarde completamente escura, como se fosse noite.
– Pois é – disse ele. Já estão dizendo que é por causa das queimadas na Amazônia, longe pra caramba daqui…
– Estão dizendo não, amigo! – retruquei – Isso é fato. Está tudo conectado sim. Os especialistas afirmam que, de fato, um evento na Amazônia, ou em qualquer outro lugar, pode repercutir muito distante mesmo. É fato.
– Ah, vocês sempre apelam para os “especialistas”… Parem de ouvir o que esses caras falam – finalizou ele, enquanto chegávamos ao destino.
E aí quem é da área da Ciência tem um choque de realidade. Por uma série de eventos – fortuitos e intencionais –, há uma perigosa descrença às informações científicas. Coisa que não é de hoje e que tem a intervenção projetada de autoridades políticas, com ataques infundados a instituições de notório saber, como o INPE [5] e a Fiocruz [6], algo potencializado nos tempos de Covid-19 em relação à própria Fiocruz [7] e ao Butantan [8]. O resultado disso é o absurdo crescimento de doutrinas absolutamente insanas e que todos minimamente conscientes já julgavam esclarecidas, como criacionismo, antivacinismo, terraplanismo e negacionismo da Ciência de maneira geral [9].
Tráfico de insetos
Mas o que isso tem a ver com insetos? Tudo. Provavelmente quase todo mundo que trabalha com insetos já deve ter recebido alguns pedidos “estranhos” de amizade nas redes sociais, especialmente no Facebook. Pedidos de amizade partindo de pessoas que não fazem parte do seu círculo regular de amizade ou profissional, estrangeiras, quase sempre oriundas de países tropicais da África e da Ásia. Locais de elevada diversidade entomológica, com entomofauna característica, chamativa, intrigante e atraente. Igualzinho é o caso do Brasil. Quando se olha o perfil do solicitante de amizade, logo se vê o gosto pelos insetos, especialmente os mais bonitões, morfologicamente aberrantes, de grande porte. Opa, então há pontos em comum com o solicitante: o interesse em insetos!
Diante disso, a coisa mais natural do mundo é você aceitar a solicitação. Quando o faz, via de regra, logo chega uma mensagem de seu novo amigo: uma oferta de venda de besouros, borboletas, gafanhotos ou outros insetos considerados carismáticos. Uma prática ilegal em muitos países, inclusive no Brasil, mas muito rentável [10].
O contrabando de insetos vai também na mão contrária, daqui do Brasil para fora, e frequentemente é tema de denúncias e matérias no Fauna News [11]. Há algum tempo, era comum que lojas de souvenires para turistas oferecessem, por exemplo, pratos e quadros enfeitados com asas de borboletas [12] e outros artigos, de gosto igualmente duvidoso, feitos com partes de insetos reais, obtidos ilegalmente. Vale realçar que, como grande parte dos mercados fornecedores de insetos traficados fica em países com imensos problemas econômicos, a questão ganha adicionalmente as cores sombrias da desigualdade social.
Mencionei acima que essa prática ilegal de comercialização de insetos é muito rentável, mas é necessário frisar que o lucro vai todo para os poderosos, os grandes traficantes, verdadeiros capitalistas do ilícito. Como em quase tudo relacionado à humanidade, aos operacionais (no caso, coletores e caçadores) restam apenas as migalhas.
Por falar em caça, não há como não perceber o forte lobby que vem sendo feito para que os poderes Executivo e Legislativo deem um jeitinho de permitir tal prática perversa [13], o que traria consequências terríveis para a preservação da biodiversidade no Brasil. Mesmo para os insetos, que evidentemente não são o alvo dos lobistas, o prejuízo seria imenso. Tal e qual o motorista de Uber do início de nossa conversa de hoje, negacionista convicto, não quis perceber, muita gente não entende que, na natureza, está tudo conectado. Animais carismáticos, certamente o objetivo preferencial dos caçadores, ao terem seus estoques populacionais reduzidos, influenciarão todas as teias e cadeias de relacionamento natural das quais participam. O que, obrigatoriamente, acabará respingando nos insetos.
A Ciência nos ensina isso. Como também nos ensina que, para preservar o planeta em que vivemos, é necessário preservar toda a biodiversidade, bem como a totalidade dos recursos naturais. Está tudo conectado. Assim, se você realmente gosta de insetos, não compre e não venda. Quebre a cadeia do tráfico de animais. E junte-se a nós na luta para que a caça permaneça proibida no Brasil. É uma questão de sobrevivência – inclusive a nossa.
#Eleições2022
Por fim, renovo o convite que já havia feito no mês passado. Estamos em vias de traçar o destino do Brasil para os próximos quatro anos. Parece pouco tempo e realmente é, ao menos para se pensar em uma reconstrução. Mas para se destruir o que nos resta, quatro anos é um tempo mais do que suficiente. Lembre-se que não dá para dissociar a defesa da biodiversidade e dos recursos naturais da questão social. Está tudo conectado, não tem jeito. Lembre-se disso ao votar.
Mas antes do voto, confira o que o seu candidato pensa sobre o meio ambiente e os recursos naturais, consultando a excelente iniciativa #VotePorMim, aqui do Fauna News [14]. Vote não só por você ou por seus interesses pessoais, mas também por aqueles que não têm voz. Como os insetos. E também os outros bichos, as plantas, os fungos, os protistas, as bactérias… Vote pela vida. Diga não à caça.
Referências
[1] https://faunanews.com.br/2022/09/21/insetos-nao-estao-a-venda-parte-1/
[2] https://jornadas.eca.usp.br/caderno_de_resumos_6_jornadas.pdf
[3] Da-Silva, E.R. & Silva, T.B.N.R. 2019. Urbanidades zoológicas: o Beco do Batman. A Bruxa 3(2): 21-34.
[4] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/08/19/interna-brasil,778049/dia-vira-noite-em-sao-paulo-devido-a-poluicao-e-queimadas-veja-fotos.shtml
[5] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/08/02/apos-embate-com-bolsonaro-sobre-desmatamento-diretor-do-inpe-anuncia-exoneracao.ghtml
[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/05/29/governo-censura-pesquisa-da-fiocruz-sobre-uso-de-drogas-no-brasil.ghtml
[7] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/11/05/bolsonaro-retira-condecoracao-de-pesquisador-contrario-ao-uso-da-cloroquina-para-covid.ghtml
[8] https://www.reuters.com/article/saude-covid-bolsonaro-vacina-canelou-idLTAKBN2762GE
[9] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/01/15/o-que-esta-por-tras-do-negacionismo.htm
[10] https://www.nationalgeographicbrasil.com/animais/2019/10/contrabando-insetos-aranha-escorpiao-besouro-trafico-ilegal-animais-exoticos
[11] https://faunanews.blogspot.com/2011/05/o-trafico-de-animais-tambem-acontece.html
[12] https://www.renctas.org.br/wp-content/uploads/2014/02/REL_RENCTAS_pt_final.pdf
[13] https://maternatura.org.br/em-meio-a-ineditos-esforcos-dos-poderes-publicos-para-a-liberacao-da-caca-no-brasil-abaixo-assinado-registra-mais-de-um-milhao-de-assinaturas-contra-a-pratica/
[14] https://faunanews.com.br/2022/09/05/fauna-news-lanca-o-votepormim-saiba-quem-tem-propostas-para-a-fauna-na-eleicao/
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Confira o quinto episódio do Silvestres, o podcast do Fauna News, em que abordamos o esforço de políticos para liberar a caça de animais silvestres no Brasil.
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