Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Segunda metade da década de 1980. Nos bons tempos da distante juventude, era eu um aluno de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dando os primeiros passos no estudo dos insetos, como estagiário no Laboratório de Entomologia. Certa tarde, eu estava sozinho no laboratório quando bateu à porta um senhor carregando um pote plástico fechado, daqueles de sorvete de dois litros. Logo imaginei que se tratava de alguém que queria identificação para um inseto ou outro artrópode, algo muito comum. Quem não é da área não faz ideia da quantidade de pedidos de identificação que um laboratório que estuda insetos recebe, algo que, em tempos de internet, é potencializado pelo envio de fotografias. É um tal de “esse bicho pica?”, “esse bicho é venenoso?”, “isso é barbeiro?” que não está no gibi…
Bom, voltando ao visitante, ele abriu o pote e me mostrou. Pude ver que o conteúdo era uma lagarta bem grandinha da família Sphingidae, bicho muito bonito e que, quando adultos, são chamados de mariposa-falcão ou mariposa-beija-flor. Então o visitante se apresentou, disse que não era da universidade, mas que um amigo havia dito a ele que ali na UFRJ tinha gente que estudava insetos e assim acabou chegando no laboratório onde eu era estagiário. Aí eu, imaginando que ele queria a identificação da lagarta, falei sobre a família, comecei a falar sobre alguns aspectos biológicos do grupo, mas fui interrompido pela pergunta: “Quanto você me paga por ela?”
Confesso que demorei a entender e certamente isso ficou meio que estampado na minha cara. O sujeito, então, explicou melhor. Basicamente, ele encontrou a lagarta e, como nunca tinha visto alguma parecida, achou legal e mostrou para os amigos. Conversa vai, conversa vem, alguém alertou que aquilo poderia ser “valioso” e que na “universidade” sempre tem gente que estuda “essas coisas”. Aí ele resolveu ir à UFRJ, indicaram o prédio onde fica a Biologia, ele mostrou a lagarta na portaria e lhe encaminharam ao Laboratório de Entomologia. Desse jeito, ele chegou até mim e queria saber quanto eu pagaria pela preciosa lagarta que havia encontrado. Agora sim, eu entendi.
Expliquei que aquela lagarta é integrante da nossa biodiversidade (certamente não utilizei essa palavra, que não era tão comum quanto agora, devo ter falado “faz parte da fauna brasileira” ou coisa assim) e que não é um objeto vendável. E, mais ainda, mesmo que se pudesse vender um animal silvestre “achado”, a universidade pública não poderia comprar.
Certamente, meio chateado (corrigindo, bastante chateado), meu (agora nem tão) camarada deu meia volta e se foi, frustrado por não ter um bilhete premiado em mãos. Depois de um tempinho, fui atrás imaginando que, talvez, o cara pudesse ter soltado a lagarta em algum canteiro, mas não encontrei. Espero que ela tenha empupado e, posteriormente, voado por ali.
Mais ou menos na mesma época, ao chegar em casa, fui recepcionado pelo meu saudoso avô, que nem me deixou entrar e logo me apontou que “aquele camarada” queria me mostrar algo. O velho Mazinho (o nome de meu avô é Delamare, apelidado de Mazinho) era engraçado, se referia a todos como “camarada”, embora tivesse medo/raiva do comunismo por conta da propaganda golpista, mesmo sem ter a menor ideia do que se tratava – aliás, quase ninguém tem. O tal camarada era um gari que, durante o ofício de varrer a rua, havia encontrado uma… Lagarta! Coincidentemente, também da família Sphingidae. Linguarudo, o velho Mazinho tinha contado para ele que o neto gostava de bicho e tal. O camarada gari tentou me vender, eu expliquei a impossibilidade de isso acontecer, ele ficou meio chateado igualzinho ao cara que visitou a UFRJ, mas é a vida. Nesse caso, o gari despachou a lagarta por ali mesmo, eu ainda tentei criar, mas ela estava parasitada, só emergiram minúsculas vespinhas parasitoides.
Saindo brevemente do campo da Entomologia, lembro de ter visto em algum telejornal local da emissora de maior audiência aqui no Rio de Janeiro um caso meio que parecido, guardadas as devidas proporções. Um catador encontrou um objeto meio estranho, diferente. Conversa daqui, conversa dali, ele descobriu serem dentes molares de um animal pré-histórico do grupo dos elefantes. Um repórter acompanhou o humilde catador até o Museu Nacional, na esperança de que ele conseguisse vender a peça, o que eventualmente amenizaria um pouco sua situação financeira difícil.
O catador e a equipe de reportagem foram recebidos por um especialista que, segundo eu vi no telejornal, disse que aqueles molares eram de mamute, elefantão que não teve, até onde se sabe, ocorrência no Brasil. Ou seja, a peça veio de fora. Didaticamente, o especialista explicou que o Museu, enquanto instituição pública, não tinha como disponibilizar verba para comprar material biológico, mas que estaria de portas abertas para receber como doação. Lembro bem da expressão de decepção do catador estampada na tela da minha TV. Sinceramente, não consigo lembrar em que época isso aconteceu, se foi mais ou menos no mesmo período dos eventos que eu vivenciei e que estão narrados acima. Sequer recordo se os molares de mamute foram doados ao Museu Nacional ou se o catador os levou de volta. Vasculhei a internet, mas não encontrei vestígio da matéria. Caso alguém saiba ou se lembre, por favor, me avise.
Muitos anos mais tarde, já como professor e pesquisador na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), desenvolvi com minha esposa, a também entomóloga Luci Boa Nova Coelho, da UFRJ, um projeto de inventário de alguns grupos de insetos em diferentes localidades do estado do Rio de Janeiro. Antes do início da pandemia da Covid-19, realizamos muitas atividades de coletas, sempre com uma querida e variada equipe de estagiários e colaboradores. Parte dessas atividades já foi contada aqui neste nosso espaço [1]. Em grande parte das vezes, seguimos um protocolo de coletas que inclui o recolhimento de insetos que ficam retidos e morrem dentro de lustres e globos de iluminação, isso em estabelecimentos comerciais às margens de rodovias que cortam localidades de nosso interesse. É um tipo de coleta bem legal, que possibilita que material que seria descartado no lixo, de certa forma, seja cientificamente reaproveitado [2] [3] [4]. Gosto de pensar que tal procedimento faz com que aas mortes dos insetos atraídos pelas luzes artificiais não tenham sido em vão.
Esse tipo de coleta, necessariamente, envolve alguma interação social, posto que é necessária a autorização para que se retire os insetos dos lustres. De um modo geral, os gerentes dos estabelecimentos, embora estranhassem o incomum pedido, acabavam autorizando até com uma certa felicidade, pois nós limpávamos os lustres para eles. Porém, impressionantemente, alguns poucos negavam, pensando que, se alguém quer um material que fica retido nos lustres, é porque tem algum valor – e não se deve “dar de mão beijada” aquilo que tem valor. O ser humano e suas complexidades.
Valor dos insetos e outros seres
Eu pretendo complementar essa conversa no mês que vem. Mas, por enquanto, gostaria de deixar algumas reflexões. A primeira é sobre as relações que estabelecemos com os outros seres vivos do planeta, considerados como meros objetos, “coisas”, moeda de troca, commodities ou recursos econômicos, muitas vezes sobrepujando o valor ambiental ou científico. Conversaremos muito a respeito disso no nosso próximo encontro.
Outra reflexão que se faz necessária é a impossibilidade de se separar a questão ambiental do gravíssimo problema da desigualdade social, o mais complicado problema deste nosso país tão rico e pobre ao mesmo tempo. Tirando a história das coletas nos lustres, que envolve a típica astúcia gananciosa dessa espécie que eu me refiro como macaco-pelado, os outros três casos relatados incluem pessoas em vulnerabilidade social. Pessoas que viram uma oportunidade, não concretizada, de conseguir algum dinheirinho extra. Independentemente da escala de complexidade, vejo semelhanças com caçadores de subsistência e até mesmo com os empregados rasos das atividades ilícitas de pilhagens ambientais. Não são eles os principais destruidores, mas braços operacionais, pobres e pequenos, dos verdadeiros inimigos da natureza, os “peixes grandes”. Vamos tornar a conversar sobre o tema.
Eleição 2022
Por enquanto, lembrem que não dá para dissociar a defesa do meio ambiente, da biodiversidade e dos recursos naturais da questão social. Está tudo ligado, não tem jeito. Lembre-se disso ao votar. Mas antes do voto, confira o que o seu candidato tem a acrescentar, consultando a excelente iniciativa #VotePorMim, aqui do Fauna News [5]. Vote não só por você ou por seus interesses pessoais, mas também por aqueles que não têm voz: os desassistidos, os bichos, as plantas, os fungos, os protistas, as bactérias… Vote pela vida.
Referências
[1] https://faunanews.com.br/2022/03/23/do-presencial-ao-remoto-algumas-das-diferentes-formas-de-falar-sobre-insetos-na-unirio/
[2] Da-Silva, E.R. & Coelho, L.B.N. 2015. Singhiella simplex (Singh) (Hemiptera: Aleyrodidae) in an urban area of Rio de Janeiro City, Brazil. International Journal of Pure and Applied Zoology 3(2): 173-175.
[3] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Flutuação populacional de Singhiella simplex (Hemiptera: Aleyrodidae) em ambiente urbano do município do Rio de Janeiro. In: Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Unirio, p. 101-108.
[4] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Population dynamics of Cicadellidae and Delphacidae (Hemiptera) in an urban environment of the Rio de Janeiro City. In: Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Unirio, p. 91-100.
[5] https://faunanews.com.br/2022/09/05/fauna-news-lanca-o-votepormim-saiba-quem-tem-propostas-para-a-fauna-na-eleicao/
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