Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Nos seres humanos, as impressões digitais são encontradas nas pontas dos dedos. Elas são aquelas pequenas elevações na pele, como marcas e linhas, que formam desenhos de padrões únicos. Esses padrões são tão únicos que não se repetem entre outras pessoas e nem mesmo entre os outros dedos de uma mesma pessoa.
Outros animais também têm impressões digitais. É o caso dos coalas, dos chimpanzés e dos gorilas. Alguns animais domesticados, como cachorros, vacas e ovelhas, também têm impressões digitais, mas essas são encontradas nas marcas e linhas de seus focinhos (como uma impressão nasal).
Mas, e entre os cetáceos (baleias, botos e golfinhos), que têm os dedos transformados em nadadeiras e orifícios respiratórios que migraram para o topo da cabeça? Será possível encontrar alguma característica que possa funcionar como uma impressão digital?
A resposta é: sim! Tanto as baleias como os botos e os golfinhos apresentam marcas naturais e únicas que, quando identificadas e registradas, nos ajudam a reconhecer cada indivíduo. Nas baleias-jubarte, por exemplo, elas são identificadas nos padrões de coloração das nadadeiras caudais. Nas baleias-franca, por sua vez, são reconhecidas através dos padrões das calosidades que elas possuem na cabeça, que são formadas por espessamentos da pele colonizadas por centenas de pequenos crustáceos (conhecidos como piolhos-de-baleia).
Já entre botos e golfinhos, essas marcas são principalmente identificadas nas nadadeiras dorsais, ou seja, naquelas nadadeiras no dorso do corpo desses animais. Essas marcas podem ser de nascença e/ou serem adquiridas ao longo da vida, como resultado de cicatrizes pelo emalhamento em redes de pesca ou de interações agonísticas com outros indivíduos, por mordidas de tubarões, doenças ou infecções, etc. Além das características das nadadeiras dorsais, manchas e cicatrizes corporais e variações nos padrões de coloração também podem ajudar.
Como essas marcas também são únicas entre cada indivíduo, podemos dizer que elas funcionam como impressões digitais. Entre pesquisadoras/es, essa informação pode ser obtida através de uma técnica conhecida como fotoidentificação, que consiste no registro fotográfico das marcas naturais. A fotoidentificação permite identificar os indivíduos de cada população ao longo do tempo, das relações sociais entre eles e, ainda, acompanhar seus movimentos entre diferentes localidades.
Normalmente, essas marcas podem ser observadas quando os indivíduos (ou parte deles) aparecem acima da superfície para respirar. Algumas marcas são tão diferentes que são fáceis de reconhecer a olho nu. Outras são tão sutis que as/os pesquisadoras/es recorrem a ajuda de programas e softwares para garantir sua correta identificação.
Vejamos o exemplo da população residente de botos-de-Lahille no canal do estuário do rio Tramandaí, no litoral norte do Rio Grande do Sul.
A bota Geraldona possui uma nadadeira dorsal de fácil identificação: sua nadadeira possui um grande corte na horizontal, inclinada em direção posterior e, vista pela lateral esquerda, é possível perceber a presença de uma cicatriz branca no final dessa elevação. Já o boto Chiquinho possui uma cicatriz grande e de coloração esbranquiçada na porção anterior da nadadeira (provavelmente causada por uma rede de pesca) e alguns entalhes (como cortes e ranhuras) na parte posterior da sua nadadeira. Também podemos observar que a nadadeira do Chiquinho apresenta uma série de marcas que, ao longo do tempo, têm sido observadas aumentando pela equipe do Projeto Botos da Barra.
Já entre os botos Rubinha e Bagrinho é mais difícil distingui-los a olho nu, uma vez que suas nadadeiras possuem marcas pequenas e pouco perceptíveis. A nadadeira da Rubinha tem dois pequenos entalhes na parte superior-posterior e um pequeno entalhe na base. O Bagrinho, por sua vez, possui três entalhes na porção posterior, sendo um maior e em formato de “V” próximo à base da nadadeira.
Assim como o Chiquinho, outros botos machos que residiam no canal do estuário do rio Tramandaí – como o Barata, o Pomba e o Lobisomem – também apresentavam nadadeiras bastante marcadas. Isso coincide com pesquisas científicas ao longo do mundo, que indicam que o aumento de entalhes, arranhões e cicatrizes nas nadadeiras dorsais é mais frequentemente observado em machos do que em fêmeas.
Em outros indivíduos, outras marcas naturais – além da nadadeira dorsal – auxiliam na sua identificação. É o caso do Coquinho, um dos quarentões dessa população, que tem uma mancha retangular e cinza escura localizada no topo do lado esquerdo da cabeça, próximo ao orifício respiratório.
O trabalho de monitoramento e fotoidentificação a longo prazo permite o reconhecimento dos indivíduos de cada população com o passar das gerações. No caso de espécies ameaçadas, como o boto-de-Lahille, esse método é fundamental, possibilitando determinar padrões de residência, tamanhos populacionais, taxas de nascimento e de sobrevivência e, até mesmo, entender características sociais e biológicas, como as relações que tecem com outros indivíduos ou quantos anos podem viver. A tecnologia das lentes e das máquinas fotográficas, assim como dos programas de fotoidentificação, também possibilitam detectar detalhes que antes não eram possíveis e complementar catálogos populacionais mundo afora de forma mais precisa.
É interessante saber que no caso dos botos-de-Lahille, que cooperam com as pessoas para capturar tainhas (seja no canal do estuário do rio Tramandaí ou no estuário de Laguna), os pescadores artesanais também têm outra técnica de identificação que é igualmente valiosa: o “jeitão”. Com seu amplo conhecimento tradicional e com os longos anos de convivência junto aos botos, eles identificam cada boto pela forma que eles pescam, interagem e se movimentam, além de outras características físicas ou comportamentais. Esse conhecimento tradicional também é fundamental para ampliar as informações sobre essas populações e, portanto, para ajudar na conservação dessa espécie ameaçada.
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