
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Esta coluna tem por objetivo contar histórias de animais silvestres de nossa fauna nativa envolvidos com solturas. A soltura em ambiente preservado seria o ato final na história desses animais, certo?
Amigo leitor, nada mais incerto! A ação de soltura de um animal silvestre envolve uma tremenda complexidade, tanto assim que o desfecho muitas vezes é imprevisível. Emoção pura! Um dos pilares para esse estado de coisas decorre dos desafios técnicos que envolvem uma soltura como, por exemplo, definir como recuperar, como reabilitar e como e onde soltar. Outro pilar inclui as discussões e os argumentos técnico-científicos que precedem uma ação de soltura e que, ao final, determinam se um animal poderá ou não ser solto.
No artigo de hoje, começo a discutir alguns desses argumentos.
Uma das críticas mais comuns a ações de soltura é a de que vivemos em um país com grande biodiversidade e que ainda possui vastas áreas de florestas naturais. Portanto, “soltar” animais seria um erro pois poderia representar um tremendo risco aos indivíduos que já viveriam nos locais previstos para alguma soltura. Os riscos apontados seriam sanitários, genéticos e até mesmo ecológicos. Assim, animais silvestres recuperados do tráfico ou de acidentes deveriam ser encaminhados para zoológicos e outros tipos de mantenedores de fauna ou, simplesmente, eutanasiados. A ideia por trás desse raciocínio é a de que deveríamos olhar somente para a espécie e não para os indivíduos da espécie.
Um tanto paradoxal, não acha, caro leitor?
Então vamos pensar um pouco sobre o raciocínio apresentado acima.
Sim, o Brasil ainda (e sabe-se lá por quanto tempo!) tem remanescentes florestais significativos e sim, possui áreas com biodiversidade importante. No entanto, estamos trabalhando arduamente para acabar com tudo isso! Fala-se muito na Amazônia e, seja para o bem ou para o mal, identificamos a região Norte do país com florestas. Mas e no resto do território nacional?
Se a região Amazônica e a região do Pantanal foram barbaramente atingidas por degradação em 2020, o que dizer de nossa sofrida Mata Atlântica que teima em continuar rebrotando? Quando saímos do discurso e passamos a olhar atentamente os mapas florestais do Brasil, vemos que a fragmentação e a degradação avançam a passos largos afetando brutalmente nossa biodiversidade. Portanto, o Brasil está longe de ser aquele país que entre suas cidades possui “ilhas intocadas” de florestas onde os animais vivem em harmonia e plenitude! Também estamos longe de sermos recordistas em áreas de preservação permanente, sobretudo quando pensamos no estado de São Paulo que, inclusive. tem 80% das áreas preservadas nas mãos de propriedades particulares. Um recente artigo publicado pela Agência Fapesp indica que as grandes propriedades rurais respondem por 54% do déficit ambiental de São Paulo. Trocando em miúdos: não só não temos toda essa cobertura vegetal, como o que sobrou está muito abaixo do mínimo determinado pelo tão maltratado Código Florestal.
E qual a qualidade do que restou? Será mesmo “uma Brastemp”? No entanto, os tais dos indivíduos, aqueles que não sabem que são uma espécie, continuam dando um jeito e existindo. Um verdadeiro desafio!
E onde entra a soltura nessa história?
Exatamente hoje, na área de soltura da RPPN Fazenda Renópolis (Santo Antônio do Pinhal – SP), estava olhando um comedouro que abastecemos como apoio aos pássaros que soltamos. Lá estavam as gralhas-do-campo. Nunca soltamos uma. Mas elas aprenderam que ali tem alimento e vez por outra vem comer “um lanchinho grátis”. Ou seja, o comedouro, que é uma ação importante de apoio a solturas, apoia também a vidinha delas. E aí alguns podem dizer que estamos afetando o comportamento natural delas, que estamos criando uma dependência entre elas e o comedouro e que, inclusive, estamos promovendo um aumento populacional já que terão mais alimento disponível, o que poderá ter consequências imprevisíveis… Uhhh… Sombrio, não é mesmo? Mas e as gralhas, o que será que elas acham? Aparentemente estamos marcando mais pontos com as gralhas do que com o pessoal da torcida contra.
Ao longo deste ano, abordaremos vários aspectos que esmiúçam os argumentos a favor e contra essa tão falada soltura. Não percam as cenas dos próximos capítulos!
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