
Por Igor Pfeifer Coelho
Biólogo, mestre e doutorando em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador em Ecologia de Estradas desde 2003, é integrante do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
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Parte I: O que os olhos não veem o coração também sente
É uma carnificina diária, sem dúvida. Estimativas apontam para 365 milhões de vertebrados silvestres atropelados por ano nos EUA (Seiler, Andreas; Helldin, J-O (2006). Davenport, John; Davenport, Julia L., eds. Mortality In Wildlife Due To Transportation. The Ecology of Transportation: Managing Mobility for the Environment (Springer). pp. 166–8. ISBN 1-4020-4503-4. Retrieved 14 August 2013) e 475 milhões nas estradas do Brasil (Centro Brasileiro e Estudos em Ecologia de Estradas). Além de carne, há muitos exoesqueletos sendo moídos também (veja "475 milhões é só uma parte. Já pensou nos invertebrados?", publicado pelo Fauna News em 7 de abril de 2016), mas não temos nem ideia de quantos. Já parece muito, não? O problema é que essa carnificina deve ser ainda maior… Mas como sabemos quantos animais são atropelados em uma rodovia?
Percorrer a rodovia e contar o número de carcaças que encontramos é o primeiro passo, claro. Mas contar os mortos nunca foi tarefa fácil. Apenas somar o número de carcaças que encontramos em uma rodovia é uma estimativa muito aquém do número de animais que realmente morrem lá. Isso por causa de três fatores muito importantes para esta contagem: nossa área de busca por carcaças (as pistas e acostamentos) não é a área total onde pode estar uma carcaça, as carcaças têm “vida” curta nas rodovias e não somos capazes de encontrar todas as carcaças que estão na nossa área de busca (pistas e acostamentos). Vou começar falando sobre este terceiro fator, que é a capacidade de detecção do nosso método de busca por carcaças.
A detecção nada mais é do que a proporção de carcaças que encontramos do total de carcaças que estão lá na rodovia no momento em que procuramos. Muitas pessoas sustentam que isso não é um problema muito grave para a estimativa de quantos morrem, pois acreditam que seu método de busca é tão bom que essa proporção sempre será bem alta. Certamente para contar elefantes atropelados a detecção não é um problema, afinal sempre vamos encontrar 100% das carcaças de elefantes em uma procura (seja ela de carro, a pé, a cavalo, de skate ou balão… talvez de avião a coisa mude um pouco, não?). Mas nossa megafauna já se foi há tempos e a imensa maioria dos animais atropelados no Brasil (e no mundo) é de pequeno e médio porte.
A detecção de carcaças em rodovias pode variar muito dependendo do método que estamos utilizando, da capacidade individual do observador e de características da carcaça e da estrada. O método de busca mais comum é um ou dois observadores em um carro a uma determinada velocidade (a velocidade mais baixa permitida em uma rodovia é a metade da velocidade máxima). Claro que quanto mais observadores e menor a velocidade, maiores nossas chances de encontrar uma carcaça. Em geral, os observadores possuem uma capacidade similar de encontrar carcaças, mas é claro que olhos mais treinados e motivados (ou menos cansados) podem ver mais.
Em nossos experimentos para avaliar detecção de carcaças pelos observadores do NERF, apenas uma pessoa apresentou uma detecção extremamente mais baixa do que as outras, e por isso ele hoje se dedica mais a escrever os artigos para o Fauna News do que a participar de monitoramentos. Carcaças menores e de cor similar à da estrada têm menos chance de serem encontradas. De acordo com nossos experimentos, dois observadores em um veículo a 40 km/h detectam em média 85 % das carcaças de cachorros-do-mato em uma estrada asfaltada de uma pista para cada sentido, e apenas 36% das carcaças de aves pequenas e médias nesta mesma estrada. A detecção de carcaças pequenas pode ser tão baixa que é necessário mudar o método de amostragem: é praticamente impossível enxergar anfíbios pequenos de um veículo, sendo preciso monitorar a pé, embora isso também não garanta 100 % de detecção.
O tipo de pavimento da estrada monitorada (de terra, asfalto, bloquetes…), sua largura (área de busca para cada observador) e o fluxo de veículos (muitos carros atrapalham bastante a procura) são características das estradas que afetam a detecção. Considerando carcaças de diversos tamanhos e cores, calculamos que a detecção média em uma estrada de asfalto é em torno de 50 % e apenas 30 % em uma estrada de terra.
Mas como considerar a detecção em uma estimativa de quantos animais são atropelados em uma rodovia? Uma forma é fazer um experimento para calcular valores aproximados, como os mencionados acima. Para isso (atenção: é preciso autorização dos órgãos responsáveis e um bom planejamento para evitar acidentes antes de fazer o que vem a seguir!), uma equipe percorreu a estrada em que fazemos monitoramentos e colocou diversas carcaças (de diferentes tamanhos e cores), previamente coletadas nessas mesmas rodovias e congeladas. Para cada carcaça, essa equipe sabia o tipo e a localização exata. Outras equipes que não sabiam quantas carcaças, nem onde haviam sido colocadas, fizeram o monitoramento como de costume e registraram as que conseguiram encontrar. Por fim, a equipe que colocou as carcaças percorreu novamente a estrada para se certificar de quais carcaças estavam disponíveis para serem encontradas por todas as equipes.
Com experimentos assim podemos obter valores aproximados para a detecção de diferentes métodos, tipos de carcaças e tipos de estradas, bem como avaliar possíveis diferenças entre observadores. Mas é impossível realizar experimentos como esse em muitas rodovias (já pensou em colocar carcaças de capivaras na BR-116 em São Paulo, na BR-381 em Minas Gerais ou na BR-101 no Rio de Janeiro? Não dá, né?). Para esses casos, o melhor que se pode fazer é considerar valores de detecção medidos em outros experimentos para métodos, estradas e carcaças os mais similares possível.
O importante é não deixar de considerar que raramente um método terá detecção perfeita, e que, de fato, em muitos casos nossa detecção de carcaças é bem baixa. Não é porque nossos olhos não enxergam que a carnificina não está acontecendo. Sem considerar o quanto podemos enxergar (e os outros fatores que vamos comentar em outros artigos), não temos como afirmar nada muito convincente sobre a quantidade de atropelamentos em uma rodovia. Para ilustrar, convido vocês a fazer um monitoramento de animais atropelados na BR-101 no Rio Grande do Sul (vídeo 1) e depois conferir quantas carcaças você encontrou (vídeo 2).
Aposto que alguns vão encontrar 100 % ou mais (!) das carcaças, mas cabe avisar antes que alguém se considere “olhos de lince”: no vídeo, o carro está a 20 km/h (em monitoramentos reais estaria a 40-50 km/h); esse é o mais fácil de uma série de vídeos que fizemos para um curso; e, principalmente, não vale contar borrachas, pedras e outros como carcaça!
Vídeo 1: conte quantas carcaças de animais atropelados está na rodovia
Vídeo 2: assista novamente (agora com as indicações dos animais atropelados) e confira se você acertou a quantidade