Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Amistad é um filme incrível. Baseia-se em fatos ocorridos em 1839 a bordo do navio La Amistad, que era usado para o tráfico negreiro da costa africana para as Américas. Em um levante, os homens escravizados tomam a embarcação e tentam forçar o seu retorno à África. Ludibriados, terminam na costa americana. Lá, são capturados e levados a julgamento. Instala-se, então, uma discussão jurídica: seriam eles homens livres que lutaram devidamente por sua liberdade ou escravos que assassinaram a tripulação?
Naquele momento o tráfico negreiro estava proibido da África para as Américas, todavia a escravidão persistia como atividade legal. A pergunta, portanto, era: eles eram homens livres africanos ou americanos cativos? Da resposta dependeria o destino deles, mas aqueles homens não falavam inglês. Os navegadores tinham documentos forjados informando que eles haviam nascido em cativeiro. Tendo nascido em cativeiro, não teriam os direitos dos homens livres e o que cometeram seria considerado assassinato e não uma rebelião.
Impossível, para mim, não fazer uma analogia com o tráfico de fauna silvestre. As pessoas em sua maioria recriminam o tráfico, mas toleram e até praticam a escravidão de animais silvestres. Muitas inclusive, não veem uma atividade como complemento, destino ou consequência da outra. Quando uma pessoa compra um papagaio, uma arara, uma jiboia de um criadouro comercial, ela está fugindo do sofrimento causado pelo tráfico aos animais, mas não daquele do criadouro comercial. Não existem, hoje, critérios e padrões que garantam o bem-estar em criadouros. Não existe definição de tamanho de recintos, das condições que esses recintos devem ofertar aos animais e, portanto, as condições ficam a critério do criador.
Essas definições existem para zoológicos, mas para nenhuma outra categoria de cativeiro. Assim, o comum é que em criadouros comerciais, os papagaios, araras e outros animais sejam mantidos em viveiros ou gaiolas que não lhes possibilite o voo e as serpentes, por exemplo, sejam mantidas em caixas ou gavetas onde não conseguem ao menos se esticar.
Mas vamos retornar aos humanos. A estátua da rainha Catarina de Aragão, uma homenagem ao bairro Queens, cujo nome deriva também de homenagem à rainha, não pôde ser instalada em Nova York. Os residentes do bairro se opuseram à estátua, que acabou em Portugal. Argumentaram que não se aceitaria uma estátua de pessoa ligada ao tráfico de escravos. Não adiantou a defesa de que, na verdade, o pai dela estava ligado à fazenda de reprodução de escravos, mas não ao tráfico negreiro em si. Não importou essa nuance. E isso é realmente um detalhe ou existe uma real diferença?
Do ponto de vista ético, existe diferença entre capturar humanos e vendê-los ou apenas produzi-los em uma fazenda para comercializá-los? Em ambos os casos o resultado será a escravidão. O tráfico negreiro no Atlântico foi declarado ilegal, mas apenas a ilegalidade do tráfico não solucionaria a degeneração moral da escravidão que, somente em 1888, seria oficialmente abolida no Brasil.
O tráfico de animais silvestres faz parte de uma atividade maior, que é a escravidão de animais silvestres. Oriundos do tráfico ou de criadouros, o fato é que animais que possuem populações livres são mantidos em cativeiro. O tráfico possui, é certo, uma consequência a mais: ele também degenera o equilíbrio biológico, da mesma forma como o tráfico negreiro degenerava o equilíbrio social na África.
A criação comercial não interfere, a priori, com o equilíbrio ecológico, mas a base ética, ou melhor, a ausência de base ética é a mesma: o cativeiro de indivíduos de espécies livres. Essa linha de argumentação lhe parece louca, absurda? Não me importo! Afinal, em 1800 os abolicionistas, certamente, foram considerados loucos. Eu prefiro ser um louco ético e do lado da liberdade.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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