Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Conforme já abordamos algumas vezes neste nosso espaço mensal, os insetos não só são o grupo animal mais abundante e especioso, mas são também uma presença marcante em muitas manifestações culturais humanas. E isso acontece desde tempos pré-históricos [1]. Dentre as chamadas etnociências, a Etnoentomologia investiga as múltiplas formas de percepção, conhecimento e uso dos insetos e demais artrópodes por diferentes culturas humanas, tanto no passado quanto no presente [1] [2].
Completando 70 anos em 2022, o termo Etnoentomologia surgiu na literatura científica com a publicação de um estudo sobre os métodos tradicionais do povo norte-americano Navajo para o controle de pragas [1] [3].
No Brasil, um exponencial no campo da Etnoentomologia é Eraldo Medeiros Costa Neto. Licenciado em Biologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFAL e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos, Eraldo é professor pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde foi diretor da UEFS Editora por dez anos e, atualmente, é diretor do Museu de Zoologia. Autor de mais de 100 artigos científicos e mais de 10 livros, muitos versando sobre Etnoentomologia, o professor Eraldo é a pessoa ideal para nos falar sobre o tema e o faz através de uma entrevista exclusiva para o Fauna News. Apreciemos, então, o conhecimento e a experiência do professor, ao qual agradecemos penhoradamente a gentileza.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Como você define Etnoentomologia?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Da maneira mais objetiva possível, Etnoentomologia é o estudo transdisciplinar dos saberes (cosmovisões, crenças e conhecimentos) e práticas (modos de uso, manejo e atitudes) que os seres humanos possuem em relação aos insetos.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Com base em sua experiência, quais são os insetos ou grupos de insetos que são mais presentes nos estudos etnoentomológicos?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Podemos, de fato, falar em grupos de insetos e aqui eu citaria as seguintes ordens: Lepidoptera (borboletas e mariposas), Hymenoptera (formigas, abelhas, vespas), Coleoptera (besouros), Mantodea (louva-a-deus) e Blattodea (baratas e cupins).
Elidiomar Ribeiro da Silva – Qual é a diferença entre Etnoentomologia e Entomologia Cultural?
Eraldo Medeiros Costa Neto – O prefixo etno significa povo, cultura. Então Etnoentomologia é o estudo de como as pessoas percebem, classificam e utilizam os insetos dentro de uma perspectiva de um dado sistema sociocultural (por exemplo, comunidades tradicionais). Sempre que envolver o modo de pensar e de agir do indivíduo em relação aos insetos, acessando por meio de técnicas etnográficas, está-se fazendo Etnentomologia.
Entomologia Cultural, por sua vez, pode ser definida como o estudo da presença dos insetos em diferentes aspectos da cultura humana, notadamente nas sociedades mais urbanizadas. Porém, a depender de como o estudo é feito, pode envolver aí a própria Etnoentomologia se houver acesso ao conhecimento do indivíduo sobre os insetos.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Você organizou e realizou em 2013 um simpósio de Entomologia Cultural, o primeiro e único no Brasil. Quais são as suas impressões sobre o evento? Qual foi a repercussão dele entre os participantes? E entre seus colegas de setor/departamento e os gestores de sua universidade?
Eraldo Medeiros Costa Neto – O evento foi incrivelmente diverso no que se refere à dimensão das representatividades dos insetos na cultura, embora tenhamos tido um universo de pouco mais de 70 participantes (convidados palestrantes e participantes). Além dos anais do evento, foi publicado também um livro, pela editora da Universidade Estadual de Feira de Santana, com as palestras e apresentações estendidas. Considero essa obra um marco na história da Entomologia Cultural/Etnoentomologia no Brasil. E pelas reações dos participantes à qualidade técnico-científica do evento, creio que a repercussão entre eles tenha sido a mais satisfatória possível.
Os colegas não entomólogos do Departamento de Ciências Biológicas da UEFS não aderiram ao evento. E mesmo entre os entomólogos, houve apenas a participação ativa de três deles, que ajudaram na organização do evento. Dos gestores, nada a dizer.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Há oferta de disciplinas curriculares de Etnoentomologia na sua universidade?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Na UEFS, a disciplina de Etnobiologia (que inclui a Etnoentomologia) é obrigatória para os estudantes dos cursos de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas. Existe uma optativa – Princípios de Etnoentomologia –, mas não tem sido ofertada.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Temas com algum tipo de associação entre Ciência e Cultura são considerados adequados para se fazer divulgação científica. Na sua opinião, a Etnoentomologia se enquadra nessa visão?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Sim, perfeitamente. Os modos de vida dos insetos, muitos dos quais bem marcantes, chamam a atenção para apresentar ao público uma visão integrada entre Ciência e Cultura, pois esses artrópodes encontram-se “entranhados” em diferentes aspectos da vida humana, desde o passado remoto até os dias atuais.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Você é um dos cientistas brasileiros presentes nas listas de mais influentes do mundo. Do alto desse honroso reconhecimento, você considera que seu campo de atuação, a Etnoentomologia, tem a devida aceitação na academia científica brasileira?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Ainda é preciso muito esforço para vencer a barreira do preconceito acadêmico, pois a Etnoentomologia (e as demais etnociências) são vistas como algo menor, sem valia por não ser considerada uma ciência “hard”.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Você poderia nos contar algumas histórias curiosas relativas a suas pesquisas de campo? Algum causo que tenha impressionado você e sua equipe?
Eraldo Medeiros Costa Neto – De meus 26 anos de pesquisas e ensino na área de Etnobiologia na UEFS, poderia falar em alguns causos. O que me deu muita alegria de investigar e escrever sobre (publicações para diferentes revistas) diz respeito à jequitiranaboia (gênero Fulgora – ordem Hemiptera, família Fulgoridae), um inseto conspícuo que suscita muitas crenças e comportamentos não-conservacionistas (em geral, as pessoas matam o inseto por medo de que lhes cause danos), tanto no Brasil quanto nos demais países em que o gênero está presente. Trata-se de um inseto inofensivo, mas que possui muitas histórias de terror associadas a ele. Daí as pessoas frequentemente se reportarem ao animal com muito temor e as atitudes de matá-lo sempre que possível.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Atividades de campo eventualmente submetem os pesquisadores a situações perigosas, especialmente em um país violento como o Brasil. Você já passou por algum perrengue que possa nos contar?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Não em termos de violência. Apenas durante a coleta de espécimes na serrapilheira na serra da Jiboia, na Bahia, quase fui picado por uma jararaca.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Qual é o seu inseto favorito?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Ah, é covardia ter que selecionar apenas um, mas se taxonomista fosse, estudaria os Mantodea. Para mim, esse grupo é muito interessante.
Elidiomar Ribeiro da Silva – Quais dos seus livros você indicaria para alguém interessado em iniciar os estudos na área?
Eraldo Medeiros Costa Neto – Indico os livros [4], [5], [6], [7] e [8].
Certamente, por conta das pesquisas realizadas pelo professor Eraldo, muita gente passou, passa e passará a se interessar pelo tema. À propósito: os insetos mencionados na entrevista costumam ser figurinhas fáceis aqui neste espaço, muitas vezes dentro de abordagens etnoentomológicas e de Entomologia Cultural [9] [10] [11] [12] [13] [14]. Somado aos livros indicados, todo esse material se constitui em ótimo ponto de partida para o encantamento pela Etnoentomologia. Fica o convite.
Referências
[1] Costa Neto, E.M. 2022. Por que o marimbondo tem a cintura fina? A contribuição da pesquisa etnoentomológica para o entendimento das relações dos seres humanos com os insetos. A Bruxa 6 (no prelo).
[2] Posey, D.A. 1987. Temas e inquirições em Etnoentomologia: algumas sugestões quanto à geração de hipóteses. Boletim Museu Paraense Emilio Göeldi, Série Antropologia 3(2): 99-134.
[3] Wyman, L.C. & Bailey, F.L. 1952. Native Navaho methods for the control of insect pests. Plateau Magazine 24(3): 97-103.
[4] Costa Neto, E.M. 2014. Entomologia Cultural: ecos do I Simpósio Brasileiro de Entomologia Cultural – 2013. Feira de Santana: UEFS Editora.
[5] Costa Neto, E.M. 2014. Antropoentomofagia: insetos na alimentação humana. 2 ed. Feira de Santana: UEFS Editora.
[6] Costa Neto, E.M. et al. (ed.). 2009. Manual de Etnozoología: una guía teórico-práctica para investigar la interconexión del ser humano con los animales. Valencia: Tundra Ediciones.
[7] Costa Neto, E.M. 2002. Manual de Etnoentomología. Zaragoza: Sociedad Entomológica Aragonesa.
[8] Costa Neto, E.M. 2022. O bruxo-azul e a cobra-de-asa – Insetos no dia a dia de uma comunidade rural do Recôncavo Baiano. Feira de Santana: Editora Zartes.
[9] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa
[10] https://faunanews.com.br/2020/10/21/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento
[11] https://faunanews.com.br/2020/12/16/um-natal-com-historias-de-tanajuras-vagalumes-e-outros-insetos
[12] https://faunanews.com.br/2021/07/21/na-boca-do-povo-os-insetos-nas-expressoes-populares
[13] https://faunanews.com.br/2021/10/20/a-senhora-dos-insetos
[14] https://faunanews.com.br/2021/08/18/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias
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