Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
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A fauna pode ser afetada pela implantação de uma nova rodovia ou ferrovia por múltiplos mecanismos. Sem dúvida alguma, os danos mais abrangentes, intensos e duradouros são os decorrentes do acesso a novas áreas e recursos que essas infraestruturas criam e a decorrente alteração nos ambientes marginais, que vão da completa conversão da cobertura vegetal à degradação da qualidade dos remanescentes e sua distribuição na paisagem. A fome, o isolamento, a captura e caça, o atropelamento, a contaminação e as doenças são os mecanismos que se seguem e que promovem a lenta agonia das populações animais mais sensíveis, até o seu desaparecimento.
Obviamente, existem as espécies que toleram e até mesmo as que se beneficiam dessas mudanças. Mas em geral são as mesmas espécies encontradas em qualquer lugar. Claro que essas espécies não são menos valiosas do ponto de vista intrínseco do que as demais, mas são apenas um limitado testemunho da exuberância faunística do passado.
Nossa melhor oportunidade para protegermos a biodiversidade como um todo, e em particular a fauna, foco desta coluna, é “evitar o primeiro corte“. Mas por que e como não autorizar a implantação de uma estrada? Não há dúvida que estradas são importantes para o transporte de bens, serviços e pessoas, mas elas não são necessárias ou desejáveis em todos os lugares ou são menos necessárias ou menos benéficas em alguns lugares quando comparados a outros. Antes de tomarmos a decisão pela construção ou não de uma rodovia, os seus benefícios econômicos e sociais deveriam ser seriamente avaliados.
Os impactos positivos esperados de uma rodovia deveriam ser estimados e documentados em vários momentos do planejamento e essa informação deveria ser exposta de forma quantitativa e explícita, por exemplo, durante o licenciamento do empreendimento. Mas basta qualquer um buscar essa informação na seção de justificativas do empreendimento no seu Estudo de Impacto Ambiental para ser surpreendido pela superficialidade da argumentação, em geral unicamente retórica, utilizada para justificar gastos de bilhões de reais de recursos públicos.
Quem tiver curiosidade, a página de licenciamento do Ibama dá acesso a uma bela coleção de estradas sem justificativas sustentadas por qualquer tipo de evidência (obtida por simulações ou outra abordagem preditiva) dos seus benefícios. A ausência de justificativas quantitativas deveria ser razão suficiente para não aprovar o projeto, afinal os potenciais benefícios não foram demonstrados. Esse “descaso” com os impactos positivos é tão grave que desconheço processos de licenciamento que na fase de operação de um empreendimento monitoraram os impactos positivos.
Um artigo publicado em 2020 avaliou 75 projetos de ampliação ou implantação de rodovias na Amazônia brasileira e dos países vizinhos. Os autores demonstraram que, mesmo não considerando aspectos econômicos relacionados a impactos sociais e ambientais, 45% das estradas projetadas para a região causarão prejuízos econômicos quando considerados o balanço entre os investimentos em implantação e manutenção e os potenciais benefícios. Por que então construí-las? Todos são livres para levantar suas hipóteses, mas temos inúmeros instrumentos de fiscalização e instituições, incluindo os próprios empreendedores, que precisam ser acionados para proverem respostas a esta pergunta.
Cada projeto de rodovia evitado, tudo indica, será um grande alívio para o erário e para a biodiversidade! O ciclo de conversão da cobertura vegetal que se segue a uma nova estrada é evidência suficiente para termos certeza de que nenhuma ação de conservação tem mais impacto positivo do que o cancelamento de um projeto rodoviário em áreas remotas.
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