Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
transportes@faunanews.com.br
Em geral, prestamos menos atenção às interações de insetos com estradas do que às interações de outros grupos da fauna. Achei que estava na hora de dedicar a um grupo específico de insetos, as abelhas, uma série de textos para ilustrar os múltiplos efeitos que as estradas podem ter sobre ele. Este é o primeiro texto da série e foi motivado pela recente publicação de um artigo que adotou uma abordagem muito criativa para avaliar em que medida estradas bloqueiam (ou filtram) os movimentos de abelhas e a visitação às flores, e em que medida esse efeito depende da largura das estradas e do tamanho dos insetos. É razoável imaginar que estradas mais largas e com fluxo maior de veículos e outras perturbações associadas tenham um efeito barreira mais forte, assim como é razoável a expectativa de que em abelhas menores esse efeito seja mais intenso.
Mas antes de descrever o experimento e seus resultados, cabe justificar porque se preocupar com o destino das abelhas, afinal?
A resposta pode estar nos inúmeros argumentos utilitários, como o serviço ecológico da polinização, a produção direta de bens de consumo humano, a fonte de informação e inspiração para inovações tecnológicas ou ainda pelo simples conforto psico-espiritual, afinal, elas são demais. Contemplar a visitação das flores e as múltiplas formas, cores e comportamentos envolvidos, assim como entender a complexidade da organização social são. para muitos um prazer e tanto. Obviamente, existem aqueles que substituem o prazer da contemplação pelo medo e há situações de exceção que, eventualmente, justificam esse sentimento.
Outra razão para se preocupar com as abelhas é mais basal: elas merecem existir não porque nos servem de algum modo, mas simplesmente por existirem. É o que chamamos de valor intrínseco (o mesmo que atribuímos – ou deveríamos atribuir – a qualquer ser humano). Ou seja, nos preocupamos com o destino das abelhas simplesmente por serem abelhas.
Voltando ao artigo mencionado, ele claramente se situa no contexto da crescente onda de preocupação sobre como ações e estruturas antrópicas (feitas pelo homem) estão interferindo sobre o processo de polinização, do qual somos extremamente dependentes como sociedade.
A abordagem adotada pelos pesquisadores foi desenvolvida na área urbana de um município norte-americano. Foram selecionadas duas espécies de plantas com flores com características que demonstraram serem atrativas para abelhas de tamanhos distintos. Para cada espécie de planta, conjuntos de três potes, cada um com um indivíduo plantado, foram dispostos na seguinte combinação: o pote 1 teve todas as flores disponíveis pulverizadas com um pigmento visível com luz ultravioleta, que serviria de marcador da visita das abelhas e foi colocado de um dos lados da estrada; no lado oposto da estrada foi colocado o pote 2, sem flores marcadas; e o pote 3, também sem flores marcadas, foi colocado no mesmo lado da estrada do pote 1, na mesma distância observada entre os potes 1 e 2.
Conjuntos de três potes com essa disposição foram distribuídos, dependendo da espécie, em 22 ou 27 rodovias, variando de pista simples a até cinco pistas de mesmo sentido. três ou cinco ciclovias e 0 ou 9 caminhos de pedestres. Além disso, conjuntos de três potes foram dispostos com a mesma configuração e distancias condizentes com as larguras de estradas e ciclovias em ambientes contínuos (não transpostos por estradas ou outros caminhos) como gramados e campos de parques urbanos. As plantas ficavam um dia em cada local, do início da manhã ao final da tarde, e depois eram recolhidas e sob uma luz ultravioleta eram contadas o número de flores que receberam pigmento no pote “oposto” e no pote “mesmo lado”. A transferência de pigmento foi considerada um indicador da transferência de pólen.
O estudo é cheio de outros detalhes e resultados interessantes, mas resolvi destacar só quatro deles:
a) dependendo da espécie, a chance de as flores do lado oposto da estrada receberem transferência de pigmentos era 34-50% menor do que as flores do mesmo lado da estrada;
b) a probabilidade de transferência de pigmento foi menor na espécie de planta visitada por abelhas menores que, portanto, seriam mais sensíveis ao efeito barreira da estrada;
c) a transferência de pigmento diminuiu com a largura da estrada; e
d) de forma interessante, nos potes dispostos nos ambientes contínuos, sobretudo nos gramados, a transferência foi menor que naqueles dispostos nas estradas.
Resumindo: sim, estradas são um filtro de intensidade variável ao movimento de abelhas, sobretudo as estradas mais largas para as abelhas menores. Mas a possível explicação dada pelos autores para o resultado identificado pela letra “d” acima ilustra um paradoxo: em paisagens fortemente antropizadas, como áreas urbanas e de agricultura intensiva, a vegetação da beira de estradas pode representar importante ambiente para a persistência desses polinizadores, que se movimentariam preferencialmente ao longo dessas infraestruturas lineares. Ou seja, beiras de estradas também podem ser, em alguns contextos, refúgios e corredores para as abelhas. Mas isso é papo para outros textos.
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