Por Barbara Zucatti
Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda no Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma instituição (NERF-UFRGS)
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Apesar dos inúmeros impactos negativos que frequentemente abordamos, as rodovias também podem ter alguns efeitos positivos sobre espécies que se beneficiam da sua existência. É o caso dos carniceiros que usam a rodovia principalmente como fonte do seu recurso alimentar, o qual é efêmero e imprevisível: as carcaças. Em geral, os carniceiros são as aves de rapina, como os gaviões e os urubus, alguns carnívoros e até alguns onívoros, como o gambá e os tatus. A presença desses animais no local da carcaça depende de muitos fatores, como a abundância do recurso, o encontro do animal com a carcaça, a presença de outros animais e o risco que o local pode oferecer. Sabendo disso, uma pergunta surgiu: será que a presença de uma rodovia influencia no comportamento desse grupo da fauna?
Foi essa pergunta que guiou a realização do meu primeiro campo-piloto para meu mestrado. Um campo-piloto é um experimento científico que tem como principal objetivo analisar a viabilidade do estudo de acordo com as condições disponíveis. A ideia principal foi avaliar, através dos registros de armadilha fotográfica, a composição das espécies que utilizam a carcaça como recurso e o quanto essa composição muda em diferentes cenários. Ele serviu, principalmente, para ver se seria possível trabalhar com armadilha fotográfica na beira da rodovia e quanto tempo eu demoraria para ter o retorno dos registros da primeira visita.
Buscando um lugar de fácil acesso e que tivesse uma diversidade de paisagens para instalar as armadilhas fotográficas, a Estação Experimental Agronômica (EEA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Eldorado do Sul, foi escolhida como o local de estudo do campo-piloto. Com uma área total de 1.560 hectares, da qual parte é destinada à preservação do bioma da Depressão Central do RS (150 hectares), às pesquisas com campo nativo (760 hectares) e a outras pesquisas que envolvem o cultivo de plantas, criações de animais, conservação dos recursos naturais entre outros, a EEA cumpriria todos os requisitos para a realização do campo-piloto. Os vários tipos de paisagens ajudariam a testar diferentes cenários, um quilômetro distantes entre si, como: a beira da rodovia, um ambiente com mata fechada e um ambiente aberto, sem muita vegetação alta. A ideia de avaliar diferentes cenários era para entender se a composição do grupo de carniceiros em uma carcaça divergia conforme o afastamento da rodovia.
O campo-piloto durou 15 dias, desde a data em que iniciamos a instalação das armadilhas fotográficas até a retirada delas. As carcaças utilizadas para os experimentos nos pontos amostrais, um em cada cenário, foram retiradas da própria rodovia adjacente (BR-290) e os pontos amostrais foram escolhidos previamente e analisados durante a instalação das armadilhas. A fim de evitar a percepção da câmera próximo à rodovia, e consequentemente o furto dela, eu desenvolvi uma camuflagem que imitava o cenário do acostamento.
O primeiro dia do piloto foi fundamental para testar a viabilidade, na qual buscamos as carcaças e instalamos as armadilhas fotográficas. No dia seguinte, nossa missão foi retornar aos três pontos que escolhemos e verificar a presença das câmeras, avaliar a qualidade dos registros e reconfigurar as armadilhas fotográficas, se necessário. Foi quando a primeira surpresa apareceu: a carcaça em um dos pontos havia sumido, o que nos forçou a buscar uma nova carcaça para dar continuidade ao experimento. Encontramos uma relativamente fresca e inteira, que foi perfeita para a realização do piloto já que ela foi quem gerou mais registros.
Transcorridos 15 dias desde o início do piloto, eu retornei ao local para a retirada das armadilhas e para avaliação da situação das carcaças. E de cara as notícias não foram boas: a armadilha fotográfica do ponto amostral no acostamento da rodovia havia sido furtada. Nesse momento, a impossibilidade da realização do estudo que deu origem a esse piloto foi concretizada. Entretanto, as câmeras dos outros cenários forneceram registros muito interessantes, como o consumo completo da carcaça no ponto amostral fechado, as interações dos graxains com a carcaça e entre si, as interações entre as diferentes espécies de rapinantes e o registro de um gato-mourisco. Apesar do campo-piloto ter provado não ser possível seguir com o estudo nas condições que tínhamos naquele momento, em função do furto da câmera, também mostrou que, mesmo em tão pouco tempo, os registros foram surpreendentes. Em um cenário bem antropizado, próximo à rodovia foi possível observar várias interações entre as espécies, além de registros interessantes para o local.
Os experimentos científicos prévios, como o piloto, são muito importantes para entender a viabilidade do estudo que se planeja desenvolver, o que será necessário levar em consideração e o que precisa melhorar para quando for fazer o campo do estudo efetivamente. Além disso, os registros de um campo experimental, ainda que não oficiais, podem ser fundamentais para entendermos os caminhos necessários para desenvolver um estudo com questões voltadas à conservação. Por exemplo, identificar quais espécies ocorrem e se beneficiam da rodovia na busca por alimento, mesmo que esse seja um cenário desfavorável para muitas outras espécies, pode trazer soluções para ajudar na mitigação dos impactos porque assim seria possível evitar a mortalidade direta desses animais nas estradas.
https://youtu.be/TdFeUxsSH8s
Disputa por pedaços de carcaça – Imagens: NERF-UFRGS
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