
Por Dimas Marques
Jornalista e editor responsável do Fauna News
dimasmarques@faunanews.com.br
Pioneira nos estudos sobre mamíferos aquáticos no Brasil, Vera Maria Ferreira dedica-se há 40 anos ao estudo de botos e peixes-boi amazônicos. “Quando terminei meu curso de Biologia na Universidade de Brasília no auge das greves de 1978 e vim para a Amazônia, como diz a lenda, ‘fui encantada’ e aqui fiquei.” A trajetória percorrida durante essas décadas dedicadas à conservação da fauna levou a pesquisadora a ser convidada para participar do Festival Mulheres do Mundo, que acontece de 16 a 18 de novembro no Rio de Janeiro (RJ).
O Festival é Inspirado no WOW – Women of the World Festival –, movimento global lançado em 2010, no centenário do Dia Internacional da Mulher, em Londres. O WOW já foi organizado em 23 países da Europa, Ásia e África, sempre com o objetivo de gerar diálogo sobre as questões enfrentadas por meninas e mulheres, bem como suas causas e soluções. Entre as atividades organizadas, destacam-se as apresentações dos trabalhos realizados por mulheres para que seja debatida e encorajada a busca por igualdade de gênero.
Mais de 200 participantes brasileiras e estrangeiras foram convidadas para participar. E Vera será uma delas.
Atualmente, Vera é professora do curso de pós-graduação em Biologia Aquática e Pesca Interior e pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde dirige o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e atua como vice-curadora da Coleção de Mamíferos.
Em entrevista para o Fauna News, Vera relatou um pouco de sua história, das dificuldades que enfrentou por ser uma mulher se aventurado a fazer pesquisa científica na Amazônia no final da década de 1970 e sobre a conservação de botos e peixes-boi da região.
Fauna News – O que você achou de ter sido lembrada como uma referência para participar do Festival Mulheres do Mundo?
Vera Maria Ferreira – Fiquei bastante contente com a oportunidade de contribuir e falar sobre a minha experiência de vida no Festival. A questão das mulheres profissionais e mães sempre foi um tópico importante no meu dia a dia. As organizadoras desse evento estão de parabéns pela iniciativa e empenho para que o Festival aconteça no Brasil.
Fauna News – Sobre o que você falará em suas apresentações?
Vera Maria Ferreira – Fui convidada para participar de duas mesas. A primeira delas tem como titulo “Você é o que consome? Consciência de si e formas de sustentabilidade”.
O tema é extremamente atual e reflete a necessidade de mudanças na forma que consumimos os alimentos e na necessidade cada vez maior de sabermos a origem de cada produto que compramos e utilizamos. Além da origem, ou seja, a área, tipo de produção, trabalho escravo, uso de químicos e agrotóxicos, etc., a qualidade nutricional e os resíduos gerados precisam ser avaliados não só do ponto de vista dos humanos, mas tambem dos animais e do ambiente em que vivemos. A segunda mesa é sobre “O poder que emana das mulheres cientistas em rede”. Como mulher, mãe e pesquisadora, esse tema faz parte do meu cotidiano. Como “manejar” os obstáculos diários, criar uma base de respeito e reconhecimento que englobe essas três condições?
Fauna News – Em sua trajetória como pesquisadora, o fato de ser mulher influenciou em algo?
Vera Maria Ferreira – Sim. Quando eu comecei a trabalhar com os mamíferos aquáticos no Brasil, praticamente não existiam pesquisadores nessa área. Na Amazônia não era comum ver uma mulher “não local” e jovem no meio de pescadores e em barcos de pesca. Ao mesmo tempo que era um desafio conquistar a confiança e o respeito dos pescadores e das pessoas nas comunidades, que também achavam que uma mulher sozinha, em um lugar remoto, no meio de homens, não podia ser coisa boa. Se fazer respeitar era também mostrar que você era capaz e que aguentava as dificuldades do lugar; era uma necessidade para se alcançar os objetivos do trabalho e garantir sua segurança pessoal e física.
Fauna News – Hoje, a situação é diferente para as mulheres que se dedicam à pesquisa científica?
Vera Maria Ferreira – Acho que sim. Em parte. Várias mulheres nas ultimas décadas abriram esse espaço e o reconhecimento pelo trabalho feito por essas mulheres ajudou a mudar alguns aspectos e aliviar algumas dificuldades. Hoje, as mulheres que se dedicam à pesquisa cientifica e a atividades de campo têm outros tipos de problema, mas ainda não é fácil.
Os tempos mudaram, os meios de transporte na Amazônia se modernizaram, a comunicação ficou mais eficiente e as distâncias menores. Isso tambem ajuda, mas existem questões culturais e comportamentais que ainda persistem e afetam a mulher profissional em geral.
Fauna News – Você pode resumir dua trajetória voltada à conservação dos mamíferos aquáticos da Amazônia?
Vera Maria Ferreira – Eu trabalho com os botos e peixes-bois da Amazônia há cerca de 40 anos. Quando terminei meu curso de Biologia na Universidade de Brasília no auge das greves de 1978 e vim para a Amazônia, como diz a lenda, “fui encantada” e aqui fiquei. Existem dois tipos de golfinhos nos rios da bacia Amazônica, o tucuxi (Sotalia fluviatilis) e o boto-vermelho. Até recentemente apenas uma espécie de boto-vermelho, a Inia geoffrensis, era reconhecida. Conseguimos por meio de estudos morfológicos e genéticos restabelecer a espécie Inia boliviensis e, mais recentemente, em 2014, descrevemos uma espécie nova de boto para a bacia dos Rios Tocantins-Araguaia, a Inia araguaiaensis.
Estudamos uma população de botos na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá durante 26 anos e geramos o maior volume de conhecimento que existe sobre esses golfinhos. Também coordeno um projeto com o peixe-boi da Amazônia em um programa que envolve o resgate de filhotes, a reabilitação, a adaptação à vida selvagem e a reintrodução no ambiente natural. Esses dois projetos, com a orientação de jovens cientistas, ocuparam a minha vida de bióloga na Amazônia.
Fauna News – Quais são as principais ameaças aos mamíferos aquáticos da Amazônia?
Vera Maria Ferreira – Os mamíferos aquáticos da Amazônia sofrem três grandes ameaças: a captura acidental em redes de pesca, que não é quantificada, a captura direcionada principalmente para uso da carne como isca na pesca da piracatinga e as alterações ambientais como, por exemplo, a contaminação dos corpos de água e o barramento de rios para construção de hidrelétricas. Essas barragens fragmentam as populações, impedem o fluxo gênico, alteram o ambiente e reduzem a diversidade alimentar.
A causa do uso dos botos como isca é basicamente econômica. Na falta de reforço das leis, de fiscalização e controle, esses golfinhos são presas fáceis e produzem uma quantidade grande de isca e de pescado. A piracatinga é um bagre que não tinha valor comercial na região e passou a ser pescado para suprir a demanda de um outro bagre apreciado na Colômbia e que foi sobrepescado. Inicialmente, toda a produção era exportada para esse país, mas com a facilidade de captura, falta de controle pelos órgãos ambientais e pesqueiros e a grande quantidade de pescado gerado, tambem passou a ser comercializado com nomes fantasia no mercado interno, sendo exportado para diversas capitais e cidades do Brasil.
Fauna News – Quais são as espécies mais ameaçadas?
Vera Maria Ferreira – Hoje, o boto-vermelho é a espécie de mamífero aquático na Amazônia com a maior pressão antrópica. Está classificada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) como espécie ameaçada (EN – “em perigo”) e acabou de ser reavaliada pela IUCN, passando também para a categoria internacional de espécie ameaçada. As capturas acidental e direcionada e a destruição ambiental, principalmente a construção de hidrelétricas e poluição das águas, são as responsáveis por essa situação.
O peixe-boi encontra-se na categoria de espécie “vulnerável” à extinção. O tucuxi está neste momento em revisão pela IUCN e deverá também sair da categoria DD, ou seja, Dados Insuficientes, para alguma categoria de ameaça, pelos mesmos motivos que afetam o boto-vermelho.
Fauna News – O que deveria ser feito para melhorar a conservação dessas espécies?
Vera Maria Ferreira – A aplicação das leis existente de forma sistemática já seria uma grande contribuição no controle das ameaças às espécies de mamíferos aquáticos. Mas, principalmente, ampliar o período de moratória da pesca da piracatinga, até que ficasse absolutamente evidente a recuperação das populações desses golfinhos, e que fossem estabelecidos mecanismos de controle e punição aos pescadores da região que matam botos para usar sua carne como isca. Não podemos permitir que usem a carne do boto-vermelho ou de qualquer outro animal da fauna silvestre como isca para a captura de um bagre.
Observação do Fauna News: Desde janeiro de 2015, está proibida a pesca, a retenção a bordo, o transbordo, o desembarque, o armazenamento, o transporte, o beneficiamento e a comercialização da piracatinga no Brasil. A medida está prevista para durar cinco anos. A única exceção é a pesca de até cinco quilos do peixe somente para a alimentação do pescador e sua família.
Fauna News – Qual a sua opinião sobre o futuro dos trabalhos pela conservação da fauna, tanto os promovidos pelo poder público quanto os desenvolvidos pelo restante da sociedade?
Vera Maria Ferreira – A participação da sociedade na conservação da Amazônia é absolutamente indispensável. Precisamos trabalhar para educar e esclarecer o público em geral sobre a importância da manutenção da natureza e sua biodiversidade e, consequentemente, a preservação da Amazônia. É preciso mostrar que a Amazônia requer, urgentemente, uma política de desenvolvimento diferenciada de outras áreas do Brasil. O desenvolvimento é importante para a população humana, mas não pode acontecer de qualquer maneira nem a qualquer preço. A manutenção da vida humana no planeta Terra depende das nossas ações na preservação da biodiversidade e do meio ambiente. O poder publico precisa fazer cumprir as leis existentes e garantir que os recursos naturais do Brasil não sejam destruídos em beneficio de poucos.
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