Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena
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Qual é a alegação mais comum de quem defende a permanência em cativeiro de determinado animal silvestre? Acredito que seja a preocupação quanto a capacidade desse animal em viver só, sem a nossa interferência ou cuidado, à maneira que consideramos necessário para crianças ou animais domésticos.
Embora seja óbvio que os animais silvestres conseguem viver e cumprir seu papel ecológico em liberdade, a despeito da nossa doação pessoal, caridade etc., devemos aproveitar alguns dados reais que comprovar essa máxima e trazer informações importantes para algumas reflexões também importantes.
Com a intenção de provocar reflexões no amigo leitor, me proponho a relatar dois casos importantes ocorridos em dois centros de triagem de animais silvestres (Cetas) e com dois animais diferentes.
Dentre as centenas de papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) recebidos pelos Cetas do Ibama em Lorena (SP), relatamos um fato ocorrido com um indivíduo que passou pelos trabalhos de avaliação de condições fisiológicas e foi encaminhado para soltura em área de soltura cadastrada, localizada no município de Cruzeiro (SP) no dia 9 de outubro de 2018. A ave foi marcada com anilha de aço inoxidável para facilitar levantamento de dados de monitoramento.
Nesse caso, a relação desta ave com o Cetas não terminou com a soltura. O desenrolar de sua história nos apresentou informações interessantes. No dia 26 de outubro de 2018, portanto dezessete dias depois de sua soltura, ela foi encontrada na zona rural do município de Piquete (SP) e foi trazida de volta para nós. Segundo o informe do responsável pela entrega, o animal estava em situação de risco, já que buscou o contato com pessoas. A ave foi recapturada como manifestação de preocupação do cidadão que considerava a proximidade com as pessoas situação de risco para ela.
Capturado e trazido no mesmo dia para o Cetas do Ibama em Lorena, ao ser avaliada, foi constatado que o papagaio estava com escore corporal normal, sem ferimentos e fisicamente sem nenhum sinal de estresse físico ou comportamental.
Então o que ocorreu neste período de pouco mais de duas semanas, entre o processo de soltura e o retorno para o Cetas? Embora se possa imaginar muitas coisas, é necessário e possível apenas afirmar o que seja óbvio e obrigatório: a ave se deslocou nesse período entre os pontos de soltura e recaptura, considerando uma linha reta, quase 14 quilômetros. Não obstante o fato de ter sido recolhida e pelas condições expostas pelo responsável pela entrega espontânea, a ave estava fora de situação de cativeiro, com capacidade intacta de voo, bem fisicamente, não estava desnutrida, sem ferimentos ou com sinais aparentes de qualquer doença. Todos esses fatores demonstram que o papagaio, não obstante a situação da busca pelo contato humano (fator negativo de reabilitação comportamental), conseguiu apresentar condições de explorar o ambiente, se deslocar por grandes distâncias e se alimentar sem a nossa ajuda.
Agora vamos conhecer outro caso semelhante, agora com um exemplar de gavião-carijó (Rupornis magnirostris), ave de rapina bastante comum no Brasil. Esse caso nos foi relatado pela colega Natália Aparecida de Souza Lima, analista ambiental do Cetas do Ibama de Manaus (AM). Um indivíduo foi recebido pelo centro de triagem em 17 de dezembro de 2019, após ser resgatado pela Polícia Militar Ambiental daquele estado.
Essa ave passou pelos trâmites normais de triagem, avaliação, reabilitação e foi solta em 10 de janeiro de 2020 em fragmento de mata anexo à Superintendência do Ibama do Amazonas, na localidade do Distrito Industrial de Manaus. Contudo, o gaviãozinho foi encontrado ferido no dia 25 de abril de 2020, na localidade do Parque das Nações/Flores. Como a ave, da mesma forma que o papagaio, estava com marcação, foi possível fazer a descrição de sua saga durante esse período.
De novo temos alguns dados que não podem deixar de serem notados. O gavião levou sua vida normal durante 106 dias e foi encontrado em um ambiente urbano quase 11 quilômetros do local de soltura. Foi evidente a importância da marcação, que individualizou o animal dentre outros da mesma espécie. A ave estava com ferimento, mas com escore corporal normal e boas condições físicas, o que evidencia que explorou o seu ambiente e se alimentou nesse período. Contudo, infelizmente ferido, reincidiu na necessidade de contar com a atenção de um centro de triagem.
Esses foram apenas dois casos documentados de dois Cetas diferentes do Ibama no Brasil, nos quais animais que foram devolvidos para a natureza e, quando retornaram, nos contaram algumas histórias de sua aventura de retorno à liberdade. Com certeza tais fatos já foram repetidos e documentados em outros centros de triagem, contudo colocados aqui para ajudar reflexões e questionamentos que costumamos fazer sobre o trabalho realizado nos Cetas.
Os fatores que provocaram a necessidade de retorno aos Cetas podem ser debatidos. Contudo, é inegável que os animais puderam levar suas vidas normalmente em um período importante, ou seja, puderam cumprir os papeis ecológicos que são característicos de suas espécies.
Após a apresentação das duas situações, sugiro a reflexão sobre os seguintes questionamentos:
– é justificável manter um animal em cativeiro porque é arriscada a vida livre (risco de morte ou recaptura)?
– é justificável manter um animal em cativeiro porque existe um risco de, ao ser solto, voltar à condição de cativeiro?
Ficam as provocações…
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
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