Por Elisa Ilha*
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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No primeiro artigo sobre mamíferos marinhos apresentado na coluna Aquáticos, abordamos um pouco sobre quem eles são e como se adaptaram ao ambiente marinho. Vamos então dar um pouco mais de atenção aos cetáceos (ordem Cetartiodactyla), um dos agrupamentos exclusivamente aquáticos, que evoluiu de ancestrais terrestres há cerca de 55 milhões de anos. Atualmente, são reconhecidas mais de 90 espécies viventes de cetáceos, que se dividem em dois grupos: Mysticeti e Odontoceti.
Os misticetos agrupam as grandes baleias (as baleias-verdadeiras), que se caracterizam pela presença de cerdas bucais (estruturas de queratina, assim como nossas unhas e pelos!) no lugar dos dentes, a partir das quais se alimentam por filtração. Eles possuem dois orifícios respiratórios, pelos quais o borrifo (uma nuvem formada pelo ar que se condensa ao sair do corpo da baleia durante a respiração) é característico entre as espécies.
A maioria das baleias-verdadeiras são, ainda, conhecidas por realizarem grandes migrações latitudinais todos os anos, desde áreas de alimentação próximas aos polos até áreas reprodutivas mais próximas à linha do Equador. Existem pelo menos 16 espécies de misticetos no mundo, sendo nove já registradas em águas brasileiras. Algumas das mais conhecidas no Brasil são a baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae), a baleia-franca (Eubalaena australis) e a baleia-fin (Balaenoptera physalus).
Já os odontocetos se caracterizam por possuir dentes, apenas um orifício respiratório e buscar alimento, perceber o meio e se comunicar através da ecolocalização (também chamada de biosonar). Eles são conhecidos popularmente como botos ou golfinhos, mas algumas espécies, devido ao seu grande tamanho, podem, também, ser chamadas de “baleias”. É o caso, por exemplo, da orca ou baleia-orca (Orcinus orca), dos zifídeos ou baleias-bicudas (espécies da família Ziphiidae) e até mesmo do cachalote (Physeter macrocephalus).
Ao longo da sua evolução, os odontocetos desenvolveram variadas e complexas estratégias de caça e captura de suas presas, que variam desde pequenos crustáceos, peixes e lulas, até outras espécies de mamíferos marinhos (como lobos-marinhos e baleias). Aproximadamente 40 espécies de odontocetos já foram registradas em águas brasileiras, sendo algumas das mais conhecidas o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), o boto-cinza (Sotalia guianensis) e a toninha (Pontoporia blainvillei).
A conservação dos cetáceos está em debate desde, pelo menos, meados do século passado, quando a caça comercial moderna levou diversas espécies (principalmente de grandes baleias) à beira da extinção, trazendo à tona a urgência de estratégias de gestão, manejo e mitigação para a recuperação das populações ameaçadas. Nas últimas décadas, contudo, outros desafios têm sido somados, ameaçando, principalmente, os pequenos odontocetos. As maiores ameaças são, ainda, oriundas de conflitos com a pesca e, em especial, a pesca comercial de escala industrial (como a sobrepesca e a captura acidental em redes). Contudo, ameaças atribuídas à degradação do habitat marinho pelo aumento das atividades antrópicas têm sido cada vez mais recorrentes, levando à colisão com embarcações, à altos níveis de poluição sonora crônica, à poluição química e residual, entre outros.
Mas, afinal, por que conservar os cetáceos? De antemão e por definição, entenderemos aqui como conservação a preservação de populações de cetáceos selvagens e de seu habitat, de modo que possam seguir se reproduzindo por tempo indeterminado e in situ (no seu habitat). Isso significa não apenas a proteção dos organismos em si, mas também dos ambientes que sustentam as comunidades bióticas às quais pertencem. Estratégias de conservação ex situ (ou seja, “fora do local”, como zoológicos ou a partir de amostras de genéticas) não são, portanto, entendidas como conservação (a não ser que tais abordagens façam parte de um esforço de conservação mais amplo).
A primeira razão para conservá-los – e talvez a mais importante de todas – é o próprio valor intrínseco, inerente a qualquer forma de vida: por ter valor constituinte, por si só, pelo direito de existir. Algumas das espécies de cetáceos mais ameaçadas, como a toninha e o boto-rosa (Inia geoffrensis), por exemplo, constituem linhagens evolutivas únicas, muito antigas na história da Terra e que também perigam desaparecer. Mas como, ao longo do tempo, ensinaram-nos a instrumentalizar (e capitalizar) também os valores, veremos alguns dos principais “serviços” ecossistêmicos atribuídos a esses organismos.
Os cetáceos são consumidores de topo de cadeia e desempenham um efeito de cima para baixo nas comunidades bióticas aquáticas, exercendo um importante papel ecológico na manutenção do equilíbrio da estrutura trófica. Eles são considerados recicladores, reguladores e fornecedores de nutrientes para diversos ciclos biológicos, principalmente por meio de seus excrementos (como a defecação, a ureia e a própria placenta). Os excrementos adicionam ao ambiente nutrientes essenciais à vida marinha e que são naturalmente escassos: o nitrogênio, o ferro e o fósforo.
Esses nutrientes são essenciais, por exemplo, para o crescimento do fitoplâncton, microrganismos fotossintetizantes que são a base da cadeia alimentar marinha. Isso ocorre em seus deslocamentos entre áreas de alta produtividade até áreas menos produtivas e, até mesmo, através de seus movimentos na coluna d’água. Além disso, mesmo após a sua morte (quando as carcaças afundam ou encalham nas praias), os cetáceos continuam fornecendo enriquecimento orgânico nas profundezas do mar ou nas teias alimentares terrestres.
Ainda, um artigo recente, vinculado ao Fundo Monetário Internacional (FMI), indicou a proteção dos grandes cetáceos (incluindo as baleias-verdadeiras e o cachalote) como uma estratégia de mitigação fundamental para limitar os gases do efeito estufa e o aquecimento global. Isso porque os grandes cetáceos desempenham um papel significativo na captura de carbono na atmosfera: cada baleia, segundo os autores, absorve em média 33 toneladas de CO2 (gás carbônico) durante sua vida, que se acumula em seus corpos ricos em gorduras e proteínas. Esse CO2 retido é, ainda, retirado da atmosfera por séculos depois que a carcaça afunda. Além disso, os excrementos ricos em nutrientes que elas liberam (como vimos acima) contribuem para o crescimento do fitoplâncton, que é responsável por – nada menos que – 50% de todo oxigênio que existe na Terra e por capturar cerca de 37 bilhões de toneladas de CO2 (o que representa, aproximadamente, 40% de todo o CO2 produzido ou a quantidade de CO2 capturado por quatro florestas amazônicas!).
Segundo os autores, se os grandes cetáceos pudessem retornar aos tamanhos populacionais anteriores à caça comercial, poderiam gerar um aumento de fitoplâncton nos oceanos equivalente ao surgimento de dois bilhões de árvores adultas. Incrível, né?
Também, sob uma perspectiva econômica, é estimado pelo artigo o valor monetário de uma única baleia (em US$ 2 milhões de dólares) e de todo o estoque de grandes cetáceos (em US$ 1 trilhão de dólares), incluindo tanto a capacidade de captura de carbono como outros “serviços” associados à esses organismos (como o ecoturismo, benefícios para a indústria pesqueira, etc). Segundo os autores, o custo necessário para conservar os grandes cetáceos (de modo a atingirem os números populacionais do período pré-caça comercial), seria de cerca de US$ 13 dólares por pessoa por ano. Eles ainda questionam: “se concordarmos em pagar esse custo, como ele deve ser alocado entre países, indivíduos e empresas?”.
Mas – ainda que a intenção seja mostrar que os benefícios de conservar as baleias valem (inclusive economicamente) muito mais do que o custo financeiro de protegê-las – será que seguir monetarizando a natureza para estimar seu valor é a nossa melhor estratégia de conservação? É, portanto, ético monetarizar um valor constituinte? Será que todos os países, indivíduos, empresas ou sociedades têm a mesma responsabilidade sobre os consumos, os impactos gerados pela produção em moldes capitalista e a sobre-exploração de uma natureza que passou a ser entendida como recurso?
Não é a própria monetarização da vida e de seus processos que nos conduzem, ainda, a busca de um “progresso” que parte de uma lógica desenvolvimentista? Não é nessa lógica que se baseiam as leis de mercado que visam o lucro, a competição, a acumulação e a individualização? Não é em nome desse progresso que chegamos à tal cenário de ecocídio, sobrepesca, desmatamento e tamanha injustiça social? Será essa nossa melhor solução? Ou se, mesmo assim, optarmos por ela, que práticas político sociais ainda nos faltam alcançar para que tal estratégia possa atuar de forma socioambientalmente justa?
Se você se interessou pela discussão, algumas outras leituras que podem ser interessantes são Pearshing et al., 2010, Lavery et al., 2014, Ballance, 2018 e Krenak, 2019 – Ideias para Adiar o Fim do Mundo (editora Companhia das Letras).
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS.
*Elisa Ilha assume hoje como colunista da AQUÁTICOS responsável por abordar os mamíferos marinhos no lugar de Ignacio Benites Moreno, também da UFRGS. Ao professor e pesquisador Ignacio, nosso muito obrigado!
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