Do tráfico ao zoo interativo: sobre “conservação do lucro” e “pets públicos”

Eu poderia começar este artigo oferecendo um background dos números de animais traficados por ano no Brasil, das destinações mais comuns daqueles apreendidos e/ou resgatados (e suas porcentagens), explicar como cada caso é um caso e que nem todos são decisões simples de 0 – “o animal pode ser reabilitado” – ou 1 – “o animal não pode ser solto” – e até oferecer alguns exemplos práticos que eu ouvi e/ou presenciei de primatas a aves de rapina.

Mas ou eu escreveria um livro ou assumiria o risco de um discurso raso. Resolvi, então, considerar que o tráfico de fauna como uma questão muito complexa é uma informação que todo mundo já tem e convidar você, leitor, para me acompanhar direto ao meu ponto de provocação: vários empreendimentos de vida selvagem no Brasil se beneficiam com a ideia de que animais apreendidos ou resgatados não têm chances de reabilitação ou de sobrevivência e não podem retornar à natureza.

Empresas milionárias do ramo do turismo que não tem experiência na área de zoológicos ou muito menos com reabilitação animal estão agora buscando formas inovadoras de “conservar seu lucro”, se justificando através de um “selo verde” pautado, supostamente, em divulgação científica e educação ambiental.

É utilizado, ainda, o argumento de que, ao oferecer uma solução de destinação à parte destes milhares de animais que estão “sem ter pra onde ir”, realizam um serviço importantíssimo à fauna brasileira. E por isso, nós deveríamos agradecer e nos emocionar. E aplaudir.

Mas aplaudir bem alto mesmo, e talvez soltar até fogos, que é pra assustar todos os animais que eles estão expondo. Animais esses que não sabem a diferença de um cativeiro legal ou ilegal, mas que certamente podem discernir entre o silêncio de um ambiente doméstico e os olhares, vozes e flashes de quatro ônibus escolares cheios de crianças os visitando todos os dias.

Além da questão do bem-estar de tais animais que deixaram de ser pets ilegais para se tornarem “pets públicos”, precisamos concordar que não é só porque uma experiência envolve a vida silvestre que ela automaticamente tem função de conservação ou valor educativo. Muitas dessas deveriam ser vistas como o que realmente são: entretenimento.

E a minha (ou nossa) indigestão vem justamente da propaganda enganosa. O argumento de “não é perfeito, mas pelo menos funciona para x e y” não é honesto do ponto de vista ambiental. Claro, se os valores e suas porcentagens arrecadados com esse entretenimento são direcionados à viabilização ou patrocínio de pesquisas científicas é outra história, mas às vezes o custo de não ter seria menor.

Restam-nos muitas perguntas:

• E se o que estamos ensinando às nossas crianças é que pra ver bicho a gente precisa ir a um zoológico e não a uma reserva ambiental mais próxima da cidade ou a um parque natural do bairro ou até mesmo ao próprio jardim de casa?
• A nossa interação com animais silvestres é a melhor ou a única forma de proteger e conservar?
• O que uma experiência interativa entre visitantes e animais silvestres exatamente significa? O que ela ensina?
• Faz alguma diferença quando o público visitante tem a oportunidade de interagir com aves, répteis, primatas ou animais marinhos? Ou todas são equivalentes?
• A ideia é fazer as pessoas acreditarem que é isso que vai acontecer quando elas visitarem uma floresta ou o mar?
• Como estão nossas florestas? E as nossas praias?
• Ainda existem araras, passarinhos e papagaios nas matas do Estado onde essas pessoas que visitam o tal zoológico moram?
• Será que assim não estamos ensinando-as que visitar um zoológico é mais divertido, mais importante, mais proveitoso? Que é dentro da gaiola que a natureza agora está? Que é dentro da gaiola que a natureza está bem e protegida?
• Sendo assim, como e quem vai falar sobre/pelas nossas florestas e por nossos bichos livres?

Como eu disse no começo do artigo: cada caso é um caso e a questão da destinação da fauna traficada é mesmo muito complexa.

Mas sejamos menos ingênuos: a verdade é que as muitas perguntas que ainda estão pairando no ar só podem ser respondidas de forma honesta quando discutidas em conjunto com os diversos setores da nossa sociedade. Em união, óbvio, às partes interessadas, mas principal e especialmente com a fiscalização, olhares e opiniões daqueles órgãos e organizações sem nenhum tipo de contratação, troca de favores ou ganho financeiro e de marketing com os tais empreendimentos.

Neste artigo não objetivei me referir a nenhum caso em específico, mas como dizemos aqui no Nordeste: “a quem servir a carapuça que a ponha”.