Discutindo “laços afetivos” na devolução de papagaios ilegais apreendidos

Todos os dias, em torno de 10h30, no Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama no Rio Grande do Norte, entre as vocalizações de macacos-prego e araras, o barulho de carrinhos de alimentação empurrado pelos tratadores e as vozes sussurradas dos pesquisadores coletando dados por debaixo de suas máscaras cirúrgicas, pode-se ouvir um dos papagaios dizer de dentro de um dos recintos: “Oi Louro… quer café, Louro?” – simulando uma rotina que existia e expressando uma pergunta que era direcionada a ele por alguém.

Em se tratando do comércio ilegal de animais silvestres no Brasil, uma das decisões judiciais mais comuns é pela restituição ou reestabelecimento, após a apreensão, da guarda definitiva de papagaios ilegais àqueles que são a cadeia final do tráfico.

Escrito assim, eu sei, soa totalmente irracional. Mas a questão é que há certo contraste entre o sentimento que o título “cadeia final do tráfico” enaltece na teoria e o que, por vezes, significa na prática. Em uma substantiva parcela dos casos, “cadeia final do tráfico” não fala de comerciantes criminosos ou de pessoas maldosas, mas de senhoras de 81 anos que dividem sua vida (e seu café) com um “Louro” há mais de duas décadas.

Os motivos pelos quais animais (não só papagaios) são devolvidos aos seus compradores ilegais por decisão judicial vão desde 1) a espécie não estar ameaçada de extinção, 2) não ser constatado maus-tratos, 3) existência de “laços afetivos/emocionais”, 4) impossibilidade de devolução do animal à natureza e/ou 5) poucas ou nenhumas opções de destinação (como em casos de superlotação em centros de triagem e reabilitação e a impossibilidade de recebimento). Deixando à parte o motivo 1, que é indiscutível, e os motivos 4 e 5, que são de ordem prática e contingente e pertinentes à órgãos e gestores ambientais de cada localidade do país, nos resta a discussão e reflexão sobre aqueles que são surpreendentemente dois lados de uma mesma moeda: a constatação de maus-tratos e a existência de laços afetivos.

Maus-tratos a animais

De acordo com o dicionário Priberam de língua portuguesa, maus-tratos é “o crime que consiste em submeter uma pessoa (ou animal), sob sua guarda ou dependência, a castigos excessivos, a trabalhos exagerados ou a privação de comida e cuidados, prejudicando a saúde física ou mental desta pessoa (ou animal)”.

Poderia estar uma senhora de 81 anos submetendo seu papagaio a castigos excessivos ou trabalhos exagerados? Provavelmente, não. Mas poderia a ave estar sendo privada de uma alimentação e cuidado adequados, com sua saúde física e mental prejudicadas? Possivelmente, sim.

Discute-se, por isso, que uma coisa é aplicar o perdão judicial, isto é, deixar de aplicar a pena (no caso, por exemplo, a tutora ilegal não pagaria multa pela guarda sem autorização). Outra coisa é aceitar e permitir a permanência definitiva do animal naquele ambiente doméstico, com as asas cortadas “pra não fugir” e com dieta à base de sementes de girassol, por uma justificativa de “existência de laços emocionais”, que muitas vezes são subjetivamente unilaterais. Em síntese, uma pergunta: em quem estamos pensando quando tomamos tal decisão: no ser humano, ou no animal? Discuto a seguir o porquê de este caso ser preocupante.

Cada “bater de martelo” favorável ao estabelecimento da guarda definitiva de animais ilegais a seus compradores (papagaios principalmente, mas não só) significa uma adição à soma de “decisões proferidas com mesmo entendimento sobre determinada matéria” (a tal da jurisprudência). Nesse sentido, quanto mais decisões judiciais como essa forem tomadas, mais habitual será para nós, como país, enxergarmos tais resoluções não só como triviais, mas pior: como a primeira e única opção. E assim, aos poucos, ao longo dos anos, com o diminuir do horizonte e o estabelecimento de fronteiras no pensamento, a alternativa deixa de ser o que é (só uma alternativa entre tantas) para ser timbrada como “a mais justa”.

Laços afetivos entre pessoa e animal

Repensar a formulação e aplicação das leis acerca do manejo de animais silvestres comercializados como pets é necessário. Mas é preciso, além disso, ir mais a fundo: é necessária uma reestruturação do pensar sobre tais “laços afetivos entre pessoa e bicho” – o quanto esses tutores sabem sobre a biologia comportamental da espécie do animal que é seu pet (legal ou ilegal)? Será que se a senhora humilde do nosso exemplo fictício, com 81 anos de vida, já viu como interagem entre si papagaios machos e papagaios fêmeas ou como voam bonitos e livres mães e filhotes de papagaios no céu azul? Se ela pudesse ver, será que não repensaria a vida e o destino do seu Louro, que dia e noite se empoleira numa gaiola enferrujada e forrada com jornais velhos pendurada num prego na parede mofada de sua sala de estar?

É aqui que entra o papel vital do educador ambiental, que num mundo perfeito seria abarcado por políticas públicas e devidamente alinhado ao trabalho dos fiscais e da polícia ambiental.

Uma vez ouvi uma frase muito acertada que diz “todo problema ambiental é, no fundo, um problema social”. No caso, o quanto desse “laço afetivo” para com o pet é, na verdade, uma projeção de outras carências afetivas e expectativas individuais do tutor? Em outras palavras, será que, em vez de um “animal de companhia”, o que essa pessoa não precisa é de, simplesmente, companhia? E mesmo que a companhia findasse de ter que ser, por motivos que podem ser vários, a de um animal, há realmente a necessidade de ser um papagaio, de ser um silvestre? Por que não um projeto onde cães e gatos abandonados e resgatados (que são muitos) pudessem ser destinados a essas pessoas?

Para concluir, voltemos ao “Louro-do-café-das-10h30” por onde comecei este texto. Por mais que o conto seja comovente e perigosamente uma ilustração conveniente da suposta existência de um “apego”, “habituação” ou até, como erroneamente se adora dizer, “domesticação” do papagaio, o fim da história traz uma lição importante: ele não era o primeiro e nem será o último.

Todos os “Louros” que eu já vi no Cetas, advindos de cativeiros domésticos, chegam reproduzindo toques de telefone, “dando risadas”, “falando alguma coisa” e até “cantando algo”. A questão é: em contato com outros da sua mesma espécie, levaram-se apenas algumas semanas para que o “Louro-do-café” desaprendesse essa gravação e relembrasse a sua própria voz – o canto dos papagaios. Ele voltou a ser papagaio: que é o que ele era e sempre foi. E ser papagaio vem muito antes e vai muito além de ser somente um Louro. Que a gente nunca esqueça disso.

Observação: as opiniões, informações e dados divulgados 
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)