Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Nas últimas semanas, uma pesquisa científica recentemente publicada foi bastante comentada nas mídias: a descoberta e a identificação de uma nova espécie de cetáceo – um fóssil de uma espécie ancestral, com quatro pernas e capaz de se deslocar tanto em terra firme como nadar no mar.
O esqueleto parcial da espécie Phiomicetus anubis foi encontrado em rochas que datam a época geológica do Eoceno, na depressão de Fayum, no deserto ocidental do Egito. Embora essa região seja atualmente um deserto, ela já foi um dia coberta pelo mar. Devido a forma do crânio, a espécie foi batizada em referência ao deus egípcio Anúbis.
Este não é o primeiro fóssil de ancestrais de cetáceos com pernas encontrado, mas é, mesmo assim, uma descoberta relevante, já que o Phiomicetus anubis parece ser o ancestral mais antigo dos cetáceos “semiaquáticos” descoberto no continente africano. Mas, por que isso é importante?
Hoje sabemos que os ancestrais mais antigos dos cetáceos (baleias, botos e golfinhos) foram mamíferos terrestres, herbívoros, de quatro patas e com cascos fendidos (isto é, com número par de dedos) – semelhantes a veados e relacionados aos artiodátilos (ordem Artiodactyla). Dados genéticos e anatômicos suportam, que, dentre os artiodátilos, o grupo não extinto mais próximo dos cetáceos é o dos hipopótamos – e outros exemplos vivos são os bovinos e os suínos.
Os cetáceos se ramificaram de outros artiodátilos entre 55-50 milhões de anos atrás. Isso ocorreu na época geológica do Eoceno, que compreende o período entre 55-35 milhões de anos. Os primeiros cetáceos fósseis que se têm registro evoluíram nas margens do antigo mar tropical de Tethys – entre o que é, hoje, a Índia e o continente asiático (golfo de Bengala) – lá no início do Eoceno.
Através do registro fóssil, sabemos que, entre 50-35 milhões de anos, eles sofreram uma rápida diversificação. Durante esse período, passaram por diversas mudanças que revelaram uma série de adaptações funcionais e ecológicas. Mas essa não foi uma história linear e refletiu uma série de mudanças que ocorreram no ambiente marinho nesse mesmo período.
Os cetáceos ancestrais, ainda terrestres, parecem ter começado a utilizar o ambiente aquático como refúgio contra predadores ou como fonte de alimento. Na literatura, eles são frequentemente referidos como “anfíbios”, dada sua capacidade de andar em terra e nadar. Existem inúmeras e múltiplas linhas de evidências que documentam a evolução dos cetáceos nessa transição do ambiente terrestre para o aquático.
Um fóssil importante para começar a contar essa história é o Pakicetus, considerado um dos primeiros cetáceos. Esse mamífero semi-terrestre era quadrúpede, já apresentava modificações no ouvido interno que o permitiam escutar dentro d’ água (ainda que não tão bem como os cetáceos atuais) e podia nadar, mas não era capaz de realizar mergulhos profundos. Ele faz parte da extinta família Pakicetidae.
A nova espécie descoberta, Phiomicetus anubis, por sua vez, representa uma das espécies em estágio semiaquático nessa transformação evolutiva dos cetáceos ancestrais. Ele faz parte da extinta família Protocetidae que, assim como a família Pakicetidae (e outras famílias extintas como Ambulocetidae, Remingtonocetidae e Basilosauridae), fazem parte dos arqueocetos (Archaeoceti) – o grupo extinto dos cetáceos ancestrais, que incluem pelo menos trinta espécies fósseis conhecidas.
A descoberta do Phiomicetus anubis é relevante, pois fornece evidências definitivas para a coexistência dessas famílias ancestrais no continente africano – uma evidência de que a evolução não é linear – e por demonstrar que as espécies ancestrais podem apresentar anatomias e comportamentos alimentares mais diversos do que se pensava até então.
As características do crânio, da mandíbula e dos dentes do Phiomicetus anubis indicam que a espécie era predadora (piscívora e carnívora) e que tinha bastante força na mordida e capacidade de manusear presas grandes. Era capaz, também, de capturar, debilitar e reter presas rápidas (como peixes), antes de mastigá-las em pedaços menores.
Outras evidências corporais desse registro fóssil sugerem que a espécie pesava cerca de 600 quilos, era capaz de suportar seu peso fora d’água (sendo, portanto, semiaquática) e sua carcaça podia ser aproveitada por pequenos tubarões após a sua morte.
Alguns milhões de anos mais tarde, as espécies da família Basilosauridae já eram totalmente aquáticas e alcançavam latitudes temperadas e antárticas (39–40 milhões de anos). Os basilosaurídeos tinham diversas adaptações à vida aquática que, até então, não estavam presentes entre os outros arqueocetos. Alguns exemplos são os membros posteriores reduzidos, os membros anteriores já em forma de nadadeiras e corpos muito mais hidrodinâmicos.
Foram mudanças simultâneas nos mecanismos locomotores e auditivos que permitiram a dispersão dos arqueocetos para além das águas quentes e rasas do mar de Tethys, prenunciando hábitos totalmente oceânicos.
Entretanto, a diversidade dos arqueocetos decaiu no final do Eoceno, anunciando a ascensão dos Neoceti, ou seja, do grupo dos cetáceos atuais. Acredita-se que os arqueocetos (e em especial os Basilosauridae) sejam o grupo ancestral comum entre os odontocetos (Odontoceti, os cetáceos com dentes como golfinhos e botos) e os misticetos (Mysticeti, as baleias com cerdas bucais ou baleias-verdadeiras).
É a diversificação dos hábitos alimentares – a alimentação por filtração entre os misticetos e a ecolocalização nos odontocetos – que parece ter desencadeado a separação rápida desses grupos (durante mais ou menos cinco milhões de anos). No mesmo período, o oceano austral surgia e os continentes se separavam da Gondwana, os gradientes trópico-polares passavam a ser demarcados e surgiam mudanças na produtividade oceânica. O ambiente, tal como as formas de vida, também se diversificava.
Assim, entre 12-15 milhões de anos, no período conhecido como Mioceno, ocorreu a mais recente diversificação entre os cetáceos, com o surgimento rápido de várias das espécies de odontocetos e misticetos que conhecemos hoje. Eles provavelmente responderam a novos nichos ecológicos em oceanos em rápida mudança.
É nessa diversidade de espécies atuais que podemos hoje observar todas as adaptações que os cetáceos passaram para viver no ambiente aquático. Seus corpos se tornam hidrodinâmicos e seus membros posteriores se reduziram a pequenos ossos pélvicos internos e vestigiais que estão presentes em todas as espécies vivas. Os vestigiais mantêm a função de ancorar os músculos dos órgãos sexuais, uma das funções dos ossos dos quadris, como em todos os mamíferos terrestres quadrúpedes.
As anteriores caudas se adaptaram a nadadeiras caudais, que ajudam na propulsão durante o nado. Já seus membros anteriores se tornaram nadadeiras em forma de remo que, dentro de si, mantêm a mesma estrutura óssea de todos os mamíferos. Têm ossos do braço, do pulso, da mão e dos dedos. As nadadeiras peitorais ajudam na direção e estabilizam o corpo durante a natação.
As fossas nasais, por sua vez, migraram até o topo de suas cabeças, passando por estágios intermediários que são documentos em todo registro fóssil (e que são observados, também, nos estágios embrionários das espécies ainda vivas). Esse processo evolutivo do crânio, onde as mandíbulas também se tornaram mais alongadas, é conhecido por telescopagem. Ele reflete diversas adaptações à vida aquática como, por exemplo, poder sair à superfície para respirar rapidamente sem ter que retirar toda a cabeça de dentro d’água.
A telescopagem também permitiu que eles desenvolvessem um complexo sistema de comunicação de sons de alta frequência. Próximo às bases das mandíbulas estão os ouvidos internos, que transmitem ao cérebro a informação do som recebida pelas mandíbulas. É preciso ter um sistema aguçado de percepção sonora em um ambiente em que a visibilidade e o olfato não ajudam tanto na sobrevivência.
Como todos os demais mamíferos, as fêmeas dos cetáceos têm placentas, dão à luz e amamentam seus filhotes. Eles têm, também, sangue quente e evitam a perda de calor através de uma espessa camada de gordura que funciona como isolante térmico (além, ainda, de servir como reserva de energia).
Em seu sangue, há abundância de mioglobina, uma proteína com alta capacidade de transporte e armazenamento de oxigênio, que os ajuda a mergulhar até grandes profundidades e a suspender por um tempo prolongado a respiração.
Todos os cetáceos têm de pelos, mesmo que seja apenas nas fases fetais e iniciais da vida, com função sensorial (as vibrissas). Ah, e quando ainda estão no útero, os filhotes de misticetos iniciam o desenvolvimento de dentes, que são reabsorvidos antes de nascerem. Nesse processo de reabsorção, a queratina é secretada e é isso que dará origem às barbatanas (ou cerdas bucais) que crescerão após o nascimento e permitirão a alimentação por filtração. Essa é uma das evidências que nos indica que odontocetos e misticetos tiveram um ancestral comum.
Além disso, assim como seus parentes vivos mais antigos (os hipopótamos), as fêmeas dão à luz e amamentam seus filhotes dentro da água. Eles têm estômagos múltiplos, têm testículos internos, e os seus ancestrais comuns tinham ossos do tornozelo únicos e muito semelhantes.
Existem, portanto, múltiplas linhas de evidência que contribuem para nossa compreensão sobre a evolução e a história de vida desses animais na Terra. O registro fóssil é uma delas e é por isso que pesquisas e descobertas como a do Phiomicetus anubis são tão importantes. Essas evidências são como peças que nos ajudam a montar um grande quebra cabeça e que conta uma longa e bonita história que começou há milhões de anos atrás.
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