Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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A conservação in situ de predadores de topo marinhos – como os cetáceos (botos, baleias e golfinhos) – inclui inúmeros desafios. E atravessaremos, neste novo ano, a coluna Aquáticos, pensando sobre eles. Como uma forma de atravessar, também, inquietudes, para, quem sabe, poder imaginar novas possibilidades nos caminhos da conservação.
No primeiro artigo que escrevi para a Aquáticos – “Do valor intrínseco ao valor monetário: por que conservar as baleias e os golfinhos?” – trouxe uma definição de conservação que encontro pertinente, pois, entende, que a conservação das espécies-populações-estoques de cetáceos não é em si suficiente. É essencial, também, a preservação dos ambientes (habitat e ecossistemas) que sustentam as comunidades bióticas às quais essas espécies-populações-estoques pertencem. E isso faz com que seja importante entender quais habitat são usados com maior frequência por uma ou mais espécies-populações-estoques e onde as características ambientais (bióticas e abióticas) vão ser necessárias para manter um status de conservação mais favorável ao longo do tempo.
A conservação desses predadores de topo não é, contudo, uma tarefa fácil. E, desta vez, abordaremos aqueles desafios que dizem respeito a sua biologia e que os fazem organismos particularmente suscetíveis aos crescentes impactos antrópicos nos mares e oceanos.
Os cetáceos, assim como outros mamíferos de grande porte, são longevos, possuem uma maturidade tardia e apresentam baixas taxas reprodutivas. Isso quer dizer que eles podem viver uma vida longa, que demoram até atingir a idade com a qual podem gerar descendentes e que têm poucos filhotes entre maiores intervalos de tempo.
A baleia-da-Groenlândia (Balaena mysticetus), por exemplo, é uma espécie que não ocorre no Brasil, mas é o mamífero vivente com a maior expectativa de vida conhecida, sendo estimada em mais de 200 anos. Já a baleia-franca (Eubalaena australis), espécie que todos os anos habita águas brasileiras durante seu período reprodutivo, tem seus primeiros filhotes entre os oito e nove anos de idade. De forma geral, entre as fêmeas dos cetáceos, o período de gestação é de 12 meses (mas pode ser de 14 e 17 meses entre espécies maiores). As fêmeas dão à luz normalmente a apenas um filhote e, após o nascimento, a amamentação pode durar entre 12 a 36 meses. Há, ainda, um grande investimento energético das fêmeas em ensinar para os filhotes tudo aquilo que será necessário para sua sobrevivência, evidenciando não apenas um longo período de cuidado parental, como também o estreitamento de vínculos entre os pares de fêmeas e filhotes.
Para a baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae), por exemplo, o vínculo existente entre fêmeas e filhotes é considerado o elo mais forte da organização social da espécie. Assim como a baleia-franca, a baleia-jubarte se alimenta na Antártica durante o verão austral e encontra em águas brasileiras as condições ambientais adequadas para o seu período reprodutivo durante o inverno austral. A baleia-jubarte é muito conhecida pelos cantos entoados pelos machos, que constituem longas sequências de repetições, que são únicas entre as diferentes populações da espécie, variáveis entre temporadas reprodutivas e podem ser ouvidas a mais de 30 quilômetros de distância.
Menos conhecidas, as fêmeas apresentam, ainda, outras estratégias de comunicação: fêmeas e filhotes de baleias-jubarte foram registrados ”sussurrando” entre si para evitar atrair predadores durante seus movimentos migratórios. É como se, ao se comunicarem baixinho, pares de mães e filhotes diminuíssem as probabilidades de predação dos filhotes por baleias-orca (Orcinus orca), ou, até mesmo, de serem encontrados por machos que estão buscando um par para se reproduzir.
A transmissão cultural e as formas como ela se dá, portanto, desempenham um papel fundamental na sobrevivência das espécies de cetáceos e deveria ser, cada vez mais, incorporada às estratégias de conservação desses organismos.
Já abordamos a transmissão cultural no artigo sobre a pesca cooperativa – “Você conhece a pesca cooperativa?“. O boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus), embora seja uma espécie que ocorre em águas costeiras e em estuários entre o sul do Brasil, o Uruguai e a Argentina, apresenta o comportamento cultural vinculado à pesca cooperativa e aos pescadores artesanais de tarrafa em apenas dois estuários. Entre essas duas populações de golfinhos residentes, são as fêmeas as responsáveis por transmitir aos filhotes os conhecimentos necessários, sejam aqueles associados à interação com os pescadores como também demais estratégias de caça e de sobrevivência.
Tais unicidades (ou distinções, do termo em inglês distinctness) – que se referem tanto a características comportamentais quanto genéticas e/ou ecologicamente distintas entre as populações de cetáceos – são propostas atualmente como um critério importante na hora de definir áreas marinhas prioritárias para a conservação desses organismos.
Outra característica importante dos cetáceos é o fato de serem predadores de topo de cadeia (embora as baleias-verdadeiras se alimentem principalmente de organismos planctônicos). Isso significa que os cetáceos são consumidores dos níveis mais altos das cadeias tróficas, que necessitam consumir uma enorme quantidade de calorias para sobreviver e, para isso, costumam requerer grandes áreas de vida.
Assim, característicos por sua grande mobilidade, esses predadores marinhos são considerados amplamente móveis. E isso também aumenta os desafios que são atribuídos às estratégias de conservação in situ. Quase todas as espécies de cetáceos marinhas (com exceção de poucas espécies endêmicas, restritas a áreas menores) são observadas através das fronteiras geopolíticas impostas no ambiente terrestre.
Além disso, muitas espécies de hábitos oceânicos – ou seja, que ocorrem preferencialmente em alto mar – vivem, também, muito além dos limites de jurisdição marinhos em que cada país pode atuar (como, por exemplo, as Zonas Econômicas Exclusivas, que se estendem das áreas costeiras de cada país até 200 milhas náuticas). Lá em alto mar – onde alcançam poucas leis de conservação ou projetos de pesquisa – é mais difícil dimensionar quão vulneráveis estão ou não esses organismos às ações antrópicas que não param de aumentar.
Além dos movimentos de migração latitudinal realizados por muitas espécies de baleias-verdadeiras, há também espécies que realizam amplos movimentos verticais na coluna d’água. A batimetria, medida de profundidade dos oceanos, é, de fato, uma das características que mais influencia na distribuição desses organismos no ecossistema marinho. Um exemplo é o cachalote (Physeter macrocephalus), espécie que pode realizar mergulhos a profundidades superiores a três mil metros e que, assim como todos os cetáceos (e como característica de todos os mamíferos), necessitam retornar à superfície para respirar ar pelos pulmões.
Para os cachalotes, os mergulhos a grandes profundidades estão relacionados à captura de suas presas, que são geralmente lulas (inclusive lulas gigantes) e uma grande diversidade de espécies de peixes. Estes odontocetos (cetáceos com dentes) podem ingerir cerca de uma tonelada diária de alimento.
E isso revela mais uma característica importante da biologia desses predadores marinhos. Para os cachalotes, assim como para os demais cetáceos, as características ambientais que aumentam a produtividade marinha e, consequentemente, aumentam a agregação de suas presas, são amplamente descritas na literatura científica como a principal influência do ambiente físico sobre a sua distribuição.
É preciso entender, portanto, que os cetáceos não se distribuem no ambiente marinho de forma aleatória. Eles estão ativamente buscando atingir seus requerimentos energéticos (através do consumo de suas presas) e, para isso, associam-se a características oceanográficas bem definidas (apesar de espacialmente dinâmicas) e que influenciam na distribuição e na agregação de suas presas.
Algumas dessas características oceanográficas são topográficas (como a batimetria). Outras são hidrográficas e chamadas de persistentes (como correntes oceânicas e sistemas frontais) ou de efêmeras (como ressurgências ocasionadas por sistemas de vento). A temperatura superficial da água do mar, a salinidade, a concentração de clorofila e a disponibilidade de produção primária são também elementos que influenciam na distribuição das populações e das espécies de cetáceos.
Essas características oceanográficas nos ajudam, por exemplo, a entender aquilo que destacamos como importante para a conservação dos cetáceos lá no começo deste artigo: a preservação, também, dos ambientes aos quais fazem parte. E, por essa razão, daremos especial atenção a elas em nosso encontro no Aquáticos no próximo mês. Até lá!
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