Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Uma das impressões mais equivocadas que temos, em geral, sobre os ecossistemas marinhos, é sua aparente homogeneidade. Não costumamos referir-nos a eles através de biomas – apesar de suas diferentes condições ecológicas e paisagens heterogêneas – como normalmente utilizamos os biomas para fazer referência aos diferentes ecossistemas terrestres.
Mas, a verdade é que, se pudéssemos nos familiarizar com tudo aquilo que está abaixo da linha d’água, enxergaríamos, também, paisagens diversas, com extensas cordilheiras, vulcões submarinos, cânions profundos e, inclusive, regiões inóspitas sobre as quais pouco sabemos, tamanha a profundidade em que se encontram.
Os oceanos são grandes massas de águas salgadas. No mundo, existem cinco oceanos (ou bacias oceânicas): Antártico, Ártico, Índico, Pacífico e Atlântico. Eles estão interligados entre si através do movimento de alguns padrões globais (como a circulação oceânica termohalina), embora possuam características oceanográficas próprias (com diferentes temperaturas, salinidades, correntes marinhas, extensões de áreas rasas, etc.).
Os mares, por sua vez, podem ser reconhecidos como massas de água salgada menores que os oceanos (como, por exemplo, o mar Caribe no oceano Atlântico) ou como a forma popular à qual nos referimos aos oceanos que banham os litorais que frequentamos (como quando vamos “tomar banho de mar”).
No Brasil, o oceano que banha o nosso litoral é o Atlântico. E, como estamos no hemisfério sul e na porção oeste desse oceano, o chamamos de oceano Atlântico Sul Ocidental.
Os ecossistemas marinhos são influenciados tanto por fatores abióticos (ou seja, que não têm vida, mas são importantes para a vida, como o oxigênio, a luz, os nutrientes, a temperatura, a salinidade, as correntes marinhas…) como por fatores bióticos (os seres vivos que os habitam).
Os cetáceos (baleias, botos e golfinhos) são influenciados por esses fatores e cada espécie vivente tem requerimentos ambientais próprios e necessários para a sua sobrevivência.
Dentre as espécies que ocorrem em águas brasileiras, há aquelas que são endêmicas (que só existem em uma região) à bacia oceânica do Atlântico, como a toninha (Pontoporia blainvillei), o boto-cinza (Sotalia guianensis), o golfinho-pintado-do-Atlântico (Stenella frontalis) e o golfinho-de-Clymene (Stenella clymene). Essas quatro espécies ocorrem exclusivamente no oceano Atlântico e, mesmo assim, possuem preferências ambientais bastante distintas. Essas preferências, além de serem consequências de suas diferentes histórias evolutivas e de vida, são atribuídas, também, a diferentes características oceanográficas (topográficas e hidrográficas).
Há espécies presentes em águas brasileiras que ocorrem também em outros oceanos, como o golfinho-pintado-do-pantropical (Stenella attenuata) e a baleia-orca (Orcinus orca). O golfinho-pintado-pantropical, como anuncia o seu nome, se distribui em todas as zonas oceânicas tropicais e subtropicais do mundo. Já a baleia-orca é uma espécie cosmopolita (encontrada em todos os mares e oceanos do mundo), embora se saiba, cada vez mais, que suas populações estão associadas a diferentes nichos preferenciais.
Além das características topográficas – a qual nos referimos através da batimetria, a medida de profundidade dos oceanos (e que é uma das características oceanográficas mais importantes para os cetáceos) – é preciso considerar, ainda, que os oceanos são dinâmicos e estão constantemente em movimento. Esses movimentos se produzem pelo efeito dos ventos (que influenciam ondas e correntes marinhas), do Sol, da Lua e da rotação da Terra (que atuam sobre as marés e giros oceânicos) e pelo efeito de mudanças na temperatura e na salinidade da água do mar, que fazem com que as massas de água sejam mais ou menos pesadas (ou densas).
As correntes marinhas são movimentos de água produzidos pelos ventos, pelas marés e pelas diferenças na densidade da água. Águas mais frias e mais salgadas são mais densas e, portanto, se deslocam por zonas mais profundas. Enquanto isso, águas mais quentes e menos densas deslocam-se mais próximas à superfície marinha. Elas podem percorrer enormes distâncias (atravessando oceanos ou movendo-se ao longo dos continentes) e, inclusive, alterar as condições ambientais das regiões onde ocorrem.
Um exemplo disso em águas brasileiras é o encontro da corrente das Malvinas (de águas frias e nutritivas, oriundas da Antártica) com a corrente do Brasil (de águas quentes e menos nutritivas, que percorre a costa brasileira desde próximo da linha do Equador). Esse encontro acontece em latitudes próximas ao sul do Brasil (como vemos na figura do mapa), conhecida também como zona de convergência subtropical. Essa região, além das correntes marinhas, é influenciada pela desembocadura da lagoa dos Patos que, juntamente com o rio da Prata (no Uruguai), aportam uma enorme quantidade de nutrientes.
O encontro dessas duas correntes marinhas, com a ajuda dos ventos predominantes, faz com que águas mais frias e ricas em nutrientes tornem-se mais superficiais. Isso aumenta a produtividade primária da região e, consequentemente, aumenta as condições ambientais adequadas para riqueza de espécies marinhas e a abundância de predadores de topo (como tubarões, aves e mamíferos marinhos).
A convergência subtropical é um exemplo de característica oceanográfica bem definida e espacialmente dinâmica sobre as quais comentei em nosso encontro no Aquáticos mês passado. Isto porque apresenta movimentos sazonais: durante os meses de primavera e inverno, há o aumento da produtividade primária decorrente de uma maior presença da corrente das Malvinas, que traz águas mais frias e ricas em nutrientes mais próximo da costa e até latitudes menores (ou seja, mais ao norte, em direção a região Sudeste do país). Já, durante os meses de verão e outono, a convergência subtropical se encontra em latitudes maiores (ou seja, mais ao sul, em direção ao Uruguai) e mais distante da costa.
De fato, a região sul do Brasil apresenta a maior diversidade de cetáceos registrada para o território nacional. Das 49 espécies conhecidas para o país, 36 têm ocorrência confirmada nessa região. São oito misticetos ou baleias-verdadeiras e 28 odontocetos ou cetáceos com dentes.
Algumas pesquisas têm apontado como as características oceanográficas da convergência subtropical (juntamente com as características topográficas dessa região) influenciam nos padrões temporais e espaciais de distribuição e de diversidade de cetáceos, que podem ser, percebidos também nos padrões de encalhe desses mamíferos. É importante destacar que a alta produtividade primária faz dessa região uma das áreas de pesca mais importantes do Brasil (o que também varia sazonalmente, de acordo com os meses de maior produtividade, sendo o esforço pesqueiro mais intenso durante meses de primavera e inverno).
E, sendo os conflitos pesqueiros um dos impactos antrópicos que mais ameaçam a sobrevivência dos cetáceos, é fundamental pensar em estratégias para diminuir a dimensão dos impactos sobre os habitat preferenciais desses animais.
Para que essas estratégias possam ser efetivas, contudo, é imprescindível que incorporem a natureza dinâmica do ambiente onde esses mamíferos vivem.
Nesse sentido, há outro conceito importante de ser trazido, que vem sendo amplamente debatido quando pretendemos a conservação in situ (em situação de vida livre) dos cetáceos: a identificação de habitat críticos.
Os habitat críticos são locais ou condições oceanográficas onde as populações (ou espécies ou estoques) de cetáceos utilizam regularmente para se alimentar, para se reproduzir e socializar, incluindo, também, rotas migratórias e áreas fundamentais para a agregação de suas presas. Áreas reprodutivas como o banco de Abrolhos para as baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae) no oceano Atlântico Sul Ocidental são um exemplo de habitat crítico mais fácil de identificar. Isso porque, anualmente, durante os meses de inverno, uma das populações da espécie (conhecida como população A) migra até a costa brasileira onde encontra as condições ambientais adequadas para seu período reprodutivo (águas mais cálidas, próximas da costa e associadas a ambientes coralíneos).
Contudo, condições oceanográficas que resultam em alta produtividade primária e permitem a agregação de várias espécies (devido, entre outros, a abundância de presas disponíveis) são consideradas também áreas essenciais de serem protegidas. Portanto, não à toa, trouxe o exemplo da zona de convergência subtropical.
Mas, como ainda não há exemplos nacionais deste tipo em vigor, teremos que viajar até o mar Mediterrâneo, que se localiza entre a Europa, a África e a Ásia.
Em dada região desse mar (principalmente entre as águas de jurisdição da França, da Itália e de Mônaco) se dá a formação do sistema frontal permanente da Ligúria. A interação de fatores climáticos, hidrográficos e topográficos desse sistema resulta em altos níveis de produtividade primária e, portanto, em uma importante área de alimentação e reprodução para mais de 13 espécies de cetáceos.
A importância dessa condição oceanográfica para a conservação dos cetáceos no Mediterrâneo, em uma região amplamente impactada por ações antrópicas, influenciou na criação de uma área marinha protegida, denominada Santuário de Pelagos.
Esse santuário é um marco entre as áreas marinhas protegidas, uma vez que: foi criado considerando a natureza dinâmica dos sistemas marinhos, porque sua escala espacial foi definida através de considerações oceanográficas e ecológicas (especificamente a localização do sistema frontal permanente da Ligúria) e, além disso, expandiu as medidas protetivas para além das águas nacionais. Isso quer dizer que, além de uma administração compartilhada entre os países (o que foi, também, bastante inovador), o santuário abriu um precedente para a implementação de áreas protegidas em alto mar.
Destaco, ainda, um ponto que – futuramente – pode ser útil para nossa discussão: os habitat críticos não possuem, necessariamente, um status regulatório de área protegida. Ao contrário, eles podem apenas reconhecer a importância de uma área e a necessidade de aplicar medidas de proteção ou podem ser entendidos como o estágio inicial para a definição de futuras áreas protegidas.
Nas últimas décadas, as áreas marinhas protegidas vêm aumentando e sendo apresentadas como a estratégia de conservação in situ mais importante para os ecossistemas marinhos. Houve um aumento de dois milhões de km² cobertos por áreas marinhas protegidas em 2000 (0,7% do oceano) para mais 26 milhões de km² em 2020 (7% do oceano).
Contudo, para a conservação dos cetáceos, existem, de fato, poucas evidências empíricas da eficiência das áreas marinhas protegidas. Não são poucos os pesquisadores/as que vêm debatendo suas falhas e argumentando sobre a importância de pensarmos para além das delimitações de proteção.
Nada disso tem a pretensão de invalidá-las como estratégia de conservação, mas, como a Ciência sempre se questiona, é possível aprender sempre mais. Todos/as que se interessam por conservação sabem, aliás, o tamanho do esforço que é feito dentro das áreas protegidas (conhecidas no Brasil também por unidades de conservação) por parte dos gestores/as, estudantes/as, pesquisadores/as, voluntários/as e comunidades – mesmo com todo o sucateamento protagonizado pelos governos que pouco se interessam por elas.
No próximo mês, vamos, então, abordar as áreas marinhas protegidas para a conservação dos cetáceos, assunto que tive a oportunidade de estudar nos últimos anos.
Até lá, deixo por aqui alguns questionamentos: como, a partir da delimitação de limites fixos traçados em um ambiente tridimensional, é possível contribuir para conservação de predadores de topo associados a características oceanográficas dinâmicas? Como garantir que as estratégias de conservação aplicadas em um país ou dentro dos limites de uma Zona Econômica Exclusiva serão efetivas se não forem aplicadas, também, nas áreas de atuação de países vizinhos? O que leva as áreas marinhas protegidas a não cumprirem suas metas de conservação? O que mais é importante considerar para conservação efetiva dos cetáceos?
Até lá!
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