Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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A conservação dos cetáceos (baleias, botos e golfinhos) inclui inúmeros desafios que se entrelaçam e, sobre os quais, tenho abordado na coluna Aquáticos nos últimos meses.
Iniciamos conversando sobre os desafios associados à biologia desses grandes mamíferos predadores de topo e o que os faz particularmente suscetíveis às pressões antrópicas (feitas pela ação humana) no ecossistema marinho. Em seguida, adentramos mares e oceanos para entender um pouco sobre o dinamismo desses ambientes, sobre como isso influencia na distribuição dos cetáceos e como isso pode reforçar nossos desafios na hora de desenhar e executar instrumentos de gestão e manejo eficientes para a sua conservação. Foi assim que introduzimos as áreas marinhas protegidas – uma das estratégias mais impulsionadas nas últimas décadas – e como elas podem (ou não) contribuir para proteger os cetáceos, primeiro em um contexto geral e em seguida no cenário nacional.
Desta vez – na semana do Dia Mundial dos Oceanos (8 de junho) –, veremos quais são as principais pressões antrópicas presentes no ambiente marinho e como elas ameaçam a sobrevivência dos cetáceos.
Dentre as espécies de cetáceos marinhas, aquelas costeiras e estuarinas (ou seja, as que vivem principalmente em águas mais próximas da costa e/ou adentram estuários) estão especialmente vulneráveis aos impactos antrópicos. Pesquisas indicam (através de mapas de risco) que dentre os mamíferos marinhos – incluindo, os cetáceos, mas também pinípedes (focas e leõs-marinhos, por exemplo) , lontras e sirênios (peixes-bois) –, os odontocetos (botos e golfinhos) representam a maior parte das espécies em áreas de alto risco e que os impactos antrópicos atualmente existentes nas zonas costeiras ao longo do mundo acumulam níveis de ameaças nunca vistos. Em nosso país há quatro espécies de cetáceos de hábitos costeiros ameaçados de extinção: o boto-cinza (Sotalia guianensis), a toninha (Pontoporia blainvillei), o boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus) e a baleia-franca (Eubalaena australis).
Por outro lado – devido a outros desafios sobre os quais já comentamos, como os custos e as dificuldades de acesso para pesquisa, gestão e monitoramento –, sabemos muito menos sobre os níveis de ameaça sofridos por espécies de cetáceos oceânicas, que ocorrem principalmente em alto mar (além dos limites das zonas econômicas exclusivas de cada país).
No Brasil, há quatro espécies de cetáceos de hábitos oceânicos, ameaçadas de extinção: o cachalote (Physeter macrocephalus), a baleia-sei (Balaenoptera borealis), a baleia-fin (Balaenoptera physalus) e a baleia-azul (Balaenoptera musculus). O status de ameaça dos grandes cetáceos (cachalote e baleias-verdadeiras) é, ainda, um reflexo direto da pressão exercida durante o período de caça comercial (que em águas jurisdicionais brasileiras foram proibidas apenas em 1987, com a Lei nº 7.643). Além disso, a maioria dos cetáceos (mais que 60% das espécies) ainda é considerada como deficiente em dados (DD) para que se possa avaliar o seu status de conservação.
As pressões derivadas da indústria pesqueira constituem algumas das maiores ameaças para os cetáceos. E é importante destacar que quanto maiores a intensidade e a escala de extração das embarcações maiores também serão (direta ou indiretamente) as pressões sobre eles.
Todos os anos, a indústria pesqueira remove cerca de 80-90 milhões de toneladas de peixes e outros organismos marinhos dos oceanos do mundo. Para que possamos dimensionar a intensidade de atuação dessa indústria, a plataforma internacional Global Fishing Watch calculou que, em um único ano, ela é capaz de capturar 40 milhões de horas de atividade pesqueira, por navios que consumiram 19 bilhões de kWh de energia e cobriram uma distância combinada de mais de 460 milhões de quilômetros. E isso é o equivalente a viajar para a Lua e voltar 600 vezes (sim, seiscentas vezes, em um único ano!).
Esses dados são representados pela porcentagem de embarcações comerciais que possuem satélites (principalmente em razão de suas grandes dimensões), sendo, portanto, sub-representadas se pensarmos na quantidade total de embarcações pesqueiras (artesanais e industriais) efetivamente atuando. No mapa construído pela GFW, você pode acessar dados de atividade pesqueira global desde 2012 até o presente, com mais de 65 mil embarcações de pesca comercial, que são responsáveis por uma captura significativa dos recursos marinhos globais (vale a pena visitar esse mapa!).
A indústria pesqueira ameaça a sobrevivência dos cetáceos através de interações como a pesca incidental (onde eles não são o alvo, mas acidentalmente acabam morrendo nas redes); a sobrepesca que leva a depleção dos estoques pesqueiros (resultando na diminuição da disponibilidade e da abundância de suas presas); de lesões ou mortes causadas por resíduos plásticos (seja através do enredamento de indivíduos na pesca fantasma ou da ingestão de resíduos); e pela poluição sonora e pelo risco de colisões (pelo ruído e o intenso tráfego de embarcações motorizadas).
Em águas jurisdicionais brasileiras, a toninha e o boto-cinza são as espécies que mais sofrem com capturas acidentais. A toninha é, inclusive, a espécie de cetáceo mais ameaçada da América do Sul em razão das capturas acidentais (principalmente na pesca de emalhe) e da degradação de seu habitat, estritamente costeiro dado o acúmulo de pressões antrópicas nessa área.
Além do ruído proveniente de embarcações motorizadas (tanto de frotas pesqueiras como comerciais), a poluição sonora também se dá pela ocorrência de outras atividades industriais (como a extração de petróleo e gás) e as tecnologias a elas vinculadas (como as prospecções sísmicas utilizadas para o mapeamento de áreas de interesse exploratório de petróleo e gás). Atividades militares (como sonares navais) e o avanço de construções (desde os disparos de canhões de ar para obtenção de dados sísmicos, às dragagens, perfurações e edificações) também intensificam o ruído antrópico no ecossistema marinho.
Além de o próprio ambiente aquático favorecer a propagação do som, o excesso de ruído também ameaça os cetáceos por eles possuírem alta acuidade auditiva. É através de seu sistema auditivo que eles investigam o ambiente e navegam, encontram presas e evitam predadores, localizam parceiros e se comunicam. O aumento do ruído antrópico, portanto, não só pode causar danos fisiológicos em seus sistemas sensoriais e órgãos internos, como também pode interromper e dificultar diversos comportamentos necessários para a sua sobrevivência.
Já imaginou como o excesso de ruído pode dificultar, por exemplo, a sobrevivência de fêmeas e filhotes de baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae), que se comunicam em sussurros para evitar predadores? Ou como, através de atividades de turismo de observação de cetáceos, o tráfego e o ruído das embarcações poderiam assustar, afastar, cessar ou alterar o comportamento das espécies em seus habitat críticos (como áreas de reprodução ou alimentação) apenas para evitar as embarcações?
Já o desenvolvimento de indústrias marinhas (aliadas à circulação de frotas pesqueiras e comerciais) intensifica o tráfego de embarcações ao longo do mundo e, assim, também, os riscos de colisão com as embarcações e/ou com suas hélices. As colisões podem causar marcas, lesões, ferimentos e até a morte. Elas ameaçam principalmente grandes cetáceos de natação mais lenta (como as baleias-verdadeiras), mas podem afetar todas as espécies.
Em águas brasileiras, a baleia-franca-austral é uma das espécies que sofre diretamente com colisões com embarcações. Juntamente com o emaranhamento em redes de pesca, elas constituem as maiores ameaças para a sobrevivência desta espécie. A maior parte das colisões com embarcações de grande porte se concentram no estado do Rio Grande do Sul, indicando a associação dessa mortalidade com o intenso tráfego marítimo gerado pelo porto de Rio Grande (cujas rotas de navegação e acesso seccionam e/ou sobrepõem as rotas migratórias da espécie).
Além disso, a poluição – tanto residual como química – também é crescente em mares e oceanos ao longo do mundo. Os resíduos materiais (com ênfase nos plásticos, sobre os quais já comentamos), ameaçam a sobrevivência dos cetáceos através ingestão (comprometendo a digestão, causando o bloqueio do trato digestivo e a desnutrição) e do enredamento do corpo de indivíduos ou partes dele (o que pode levar a ferimentos, lesões e até a morte).
Já as águas residuais (oriundas do esgoto não tratado) se somam à poluição química (resultante do uso de poluentes orgânicos persistentes, organoclorados, metais pesados, agrotóxicos, antibióticos na aquicultura, rejeitos de mineração, derramamentos de óleo, entre outros tantos), levando a contaminação das águas e dos organismos através de processos conhecidos como bioacumulação (processo pelo qual substâncias – ou compostos químicos – são absorvidas pelos organismos) e biomagnificação (acúmulo progressivo de substâncias de um nível trófico para outro ao longo da teia alimentar).
Os cetáceos são especialmente vulneráveis a essa exposição pois são predadores de topo de cadeia e, ainda, possuem grossas camadas de gordura em seus corpos. Os contaminantes que não podem ser digeridos são acumulados em seus tecidos adiposos e podem ser transferidos para os filhotes durante a amamentação. Poluentes são comumente registrados em cetáceos em altas concentrações e podem, entre outros, atuar como disruptores dos sistemas reprodutivo, imunológico e endócrino.
A população de botos-cinza residentes na baía de Guanabara (RJ), por exemplo, recentemente apresentou o primeiro declínio populacional confirmado entre os delfinídeos, o que relacionado às capturas acidentais, ao alto tráfego de embarcações, à poluição sonora, e também, à exposição a poluentes imunossupressores e desreguladores endócrinos presentes.
Outra grande preocupação atual – e que já são mundialmente observadas – são as mudanças climáticas globais, que poderão gerar mudanças nas temperaturas e no nível do mar, além de ocasionar alterações na circulação oceânica, na cobertura de gelo, na salinidade, na disponibilidade de produção primária e em padrões climáticos. Já vimos como os grandes cetáceos são fundamentais para ajudar no combate às mudanças climáticas, mas é verdade que, ainda, não temos a dimensão do quanto elas poderão, efetivamente, afetar nos padrões de distribuição e na sobrevivência desses carismáticos mamíferos marinhos.
Entretanto, há pelo menos uma coisa da qual não temos dúvida: precisamos proteger os cetáceos para proteger os oceanos. E precisamos proteger os oceanos para proteger toda a vida na Terra. Que nessa semana, em que simbolizamos o “Dia Mundial dos Oceanos”, possamos refletir sobre a importância de proteger e resguardar os ecossistemas marinho e toda sua diversidade de vidas.
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