Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Dando sequência à série – Desafios para a conservação dos cetáceos (baleias, botos e golfinhos) – retomamos nossa conversa sobre as áreas marinhas protegidas, com ênfase no atual cenário brasileiro, no que diz respeito aos cetáceos. Mas não podemos deixar de abordar, ainda que pouco, o desmonte da política ambiental em curso no país, porque, afinal, este é também um enorme desafio para a conservação desses organismos.
Na parte I sobre áreas marinhas protegidas, conversamos sobre a importância biológica e socioambiental da existência de áreas protegidas (conhecidas no Brasil também por unidades de conservação); sobre as principais deficiências que podem levá-las a não atingir suas metas de conservação no ecossistema marinho; e sobre como essas deficiências se somam aos grandes desafios de proteger predadores de topo altamente móveis como os cetáceos.
Relembro que, quando falamos da diversidade de cetáceos no Brasil, são 49 espécies já registradas: quatro de golfinhos de rio (três botos do gênero Inia e o tucuxi), 36 botos e golfinhos marinhos (vários de ocorrência comum, como o golfinho-de-dentes-rugosos, e outros com apenas um único registro, como o golfinho-liso-austral) e nove espécies de baleias-verdadeiras (sendo uma registrada pela primeira vez há poucos anos).
Poucas áreas marinhas protegidas foram criadas tendo uma espécie de cetáceo como o espécie-alvo de conservação e elas englobam pequenas porções costeiras de habitat críticos da baleia-jubarte, da baleia-franca e do boto-cinza. São a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca (SC), a APA Ponta da Baleia/Abrolhos (BA), a APA Anhatomirim (SC), a APA Boto Cinza (RJ) e a Reserva Faunística Costeira (Refatus) de Tibau do Sul (RN).
Há outras, ainda, como o Parque Nacional (Parna) dos Abrolhos (BA) que incluem objetivos-centrais mais abrangentes (como proteger o maior banco de corais e a maior diversidade marinha do oceano Atlântico Sul Ocidental), mas que contribuem diretamente para a conservação dos cetáceos (no caso de Abrolhos, por abrigar uma porção do principal berçário das baleias-jubarte no oceano Atlântico Sul Ocidental). Alguns outros exemplos importantes nesse sentido são: o Monumento Natural (Mona) do Arquipélago das Ilhas Cagarras, no Rio de Janeiro (onde o golfinho-de-nariz-de-garrafa utiliza as águas rasas do interior do arquipélago), o Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, em São Paulo (onde o golfinho-pintado-do-Atlântico é frequentemente avistado), e o Parna de Fernando de Noronha, em Pernambuco (que circunda uma porção do habitat crítico do golfinho-rotador).
Até 2018, a porcentagem de cobertura de águas brasileiras (ou seja, dentro dos limites da Zona Econômica Exclusiva) por áreas marinhas protegidas era de 1,5%. Isso mudou quando se oficializou a criação de dois novos conjuntos de áreas protegidas nos arquipélagos oceânicos de São Pedro e São Paulo (PE) e de Trindade e Martim-Vaz (ES).
A criação desses conjuntos fez a porcentagem de cobertura de águas nacionais por áreas marinhas protegidas (de administração federal) saltar de 1,5% para 25%. Aproveitando-se do momento, o então governo federal alegou “cumprir com folga” com seus compromissos internacionais, alcançando a meta 11 de Aichi (sobre a qual já comentei). A meta previa a proteção de 17% das áreas marinhas e costeiras de cada país signatário da Convenção da Diversidade Biológica até 2020.
Somados, os novos conjuntos compreendem 809.429,4 km² de áreas de proteção ambiental (a categoria de uso sustentável menos restritiva que existe no país), representando 87,4% das áreas protegidas. Elas estão dispostas ao redor de 116.418,5 km² de monumentos naturais (categoria de proteção integral), os quais cobrem apenas 12,6% do limite demarcado para esses conjuntos de áreas protegidas.
Infelizmente, aquilo que poderia ter sido um enorme avanço na conservação marinha brasileira – devido à relevância de ambos os arquipélagos e seus arredores para a biodiversidade marinha do oceano Atlântico Sul Ocidental –, revelou-se como mais uma política insidiosa quando os decretos de criação foram publicados.
Mudanças de cima para baixo foram feitas pelo governo federal, alterando as categorias de gestão e o desenho dos limites das áreas a serem protegidas sem critérios técnicos. Isso foi feito ignorando as recomendações feitas durante as etapas consultivas (obrigatórias por lei) por técnicos e especialistas e também pela participação da população civil.
Tais mudanças deixaram alguns dos ecossistemas mais vulneráveis (como os recifes entre 0-300 metros de profundidade ao redor das ilhas oceânicas ou os montes submarinos rasos com alto endemismo) sem qualquer tipo de proteção. E, ainda, comprometeu uma das etapas mais importantes do planejamento da conservação: a participação das partes interessadas durante o processo.
Além disso – ineditamente – foi mantido por decreto a permissão de “pesca de subsistência” dentro do limite das áreas protegidas, inclusive dentro da categoria de proteção integral (mesmo que a legislação ambiental não permita esse tipo de atividade nesse tipo de unidade de conservação). Isso foi bastante surpreendente, pois nenhum dos dois arquipélagos têm uma população civil residente ou comunidades tradicionais que dependam da pesca.
Na verdade, o que se observa em ambos os arquipélagos são atividades de pesca comercial (com embarcações com mais de 10 metros), de embarcações industriais de empresas de pesca regionais e uma pesca recreativa praticada pela Marinha do Brasil. Já existem evidências científicas, contudo, de que essa pesca recreativa tem causado mudanças na estrutura da comunidade de peixes e o declínio de algumas das principais espécies-alvo de conservação.
Essa experiência recente soma algumas das deficiências que levam as áreas marinhas protegidas a não cumprirem suas metas de conservação sobre as quais já comentei: áreas protegidas que são ecologicamente insuficientes, planejadas e/ou gerenciadas de forma inadequada e que criam falsas ilusões de proteção.
No que se refere aos cetáceos, ambos os arquipélagos são reconhecidamente importantes para diversas espécies. Em São Pedro e São Paulo há uma população residente de golfinhos-nariz-de-garrafa em águas oceânicas. Já foram avistados também, de forma esporádica, cachalotes, baleias-bicuda-de-Cuvier e baleias-jubarte.
Já nos arredores de Trindade e Martim-Vaz, diversas espécies foram avistadas nos últimos anos, incluindo registros inéditos de fêmeas com filhotes de baleias-jubarte e de baleias-sei. Trindade e Martim-Vaz estão no limite oriental de uma cadeia de montes submarinos, conhecida como cadeia Vitória-Trindade. Essa cadeia parece influenciar nos padrões de distribuição dos cetáceos no oceano Atlântico Sul Ocidental, uma vez que propicia uma maior produtividade em águas que são primordialmente oligotróficas (com baixa concentração de nutrientes), propicia a existência de áreas mais rasas em meio a águas profundas e, também, demarca a transição entre a biota tropical e subtropical nesse oceano.
Portanto, para a conservação dos cetáceos, assim como para toda biodiversidade marinha, a implementação de áreas protegidas em alto mar poderia ter significado um avanço extremamente relevante. E, além disso, a maior parte das demais áreas protegidas brasileiras se encontra em águas costeiras (protegendo principalmente espécies e ecossistemas costeiros).
Mas, infelizmente, não é possível considerar que a meta 11 de Aichi tenha sido cumprida. Para isso, o conjunto de áreas marinhas protegidas deveria ser gerido de maneira eficaz e equitativa, através de um sistema ecologicamente representativo e bem conectado.
No Brasil, além das áreas marinhas protegidas, há alguns outros instrumentos de gestão diretamente relacionados à conservação dos cetáceos. São, por exemplo, leis federais como a que proíbe a pesca e o molestamento intencional desses animais em águas nacionais; leis ou decretos municipais como os que declaram certas espécies como patrimônio natural (por exemplo, o boto-de-Lahille em Laguna, em Santa Catarina, e em Imbé, no Rio Grande do Sul); e portarias dos órgãos ambientais (Ibama ou ICMBio) que instituem centros nacionais de pesquisa e conservação, planos de ação nacionais e redes de encalhe e informação para mamíferos aquáticos.
Entretanto, é preciso admitir que – apesar dos imensuráveis esforços dos e das profissionais e comunidades que atuam diretamente para a conservação – a proteção dos cetáceos e de toda vida silvestre têm se tornado uma tarefa cada vez mais difícil no Brasil.
Dentre os impactos das atividades terrestres nos oceanos (incluindo os crimes socioambientais que assolaram o país nos últimos anos), a maior parte não poderia ter sido contida nem pela presença das áreas marinhas protegidas nem mesmo pelos outros instrumentos legais acima citados.
O maior derramamento de óleo dos oceanos tropicais ocorreu em águas brasileiras e ganhou dimensões trágicas pela omissão do governo federal em reagir. Os danos ambientais resultantes do avanço de rejeitos oriundos da mineração sobre o mar são tão grandes quanto os danos sociais provocados. A poluição por resíduos sólidos, pelo escoamento terrestre de agrotóxicos (são mais de mil novos venenos aprovados desde 2019) e de outros resíduos industriais e domiciliares avançam mar adentro. A poluição sonora aumenta, com o crescimento das atividades vinculadas à indústria petroleira, e se amplia o tráfego de embarcações (seja por atividades extrativas, pesqueiras e comerciais), aumentando as chances de colisões com a megafauna.
Todos esses impactos ameaçam diretamente a sobrevivência dos cetáceos, como também potencializam a degradação dos ecossistemas circundantes, outra deficiência relevante para o bom funcionamento das áreas protegidas. Esses exemplos reiteram, claramente, quão relevante é discutir a existência de medidas de conservação adicionais às áreas marinhas protegidas e como é preciso integrá-las a um planejamento espacial marinho.
Entretanto, tem sido difícil – senão impossível – imaginar novos rumos nos caminhos da conservação com o desmonte das políticas socioambientais em curso no país. Estamos diante dos maiores cortes de verba para a educação, para a pesquisa científica e para o orçamento do Ministério do Meio Ambiente já registrados nos últimos anos.
Isso não apenas inviabiliza as operações de fiscalização pelo país (dentro e fora das áreas protegidas, nos ecossistemas marinhos e terrestres), como também os monitoramentos e a existência de pesquisas tão necessárias para garantir a eficiência dos instrumentos e das políticas de conservação. Como vamos, assim, fiscalizar grandes áreas marinhas em mar aberto e/ou garantir os subsídios necessários para bom funcionamento das áreas protegidas e das normas ambientais em vigor?
Além disso, na madrugada de ontem, dia 13 de maio, o texto do relator Neri Geller (PP-MT) para a Lei Geral de Licenciamento Ambiental (PL nº 3.729/2004) foi aprovado na Câmara de Deputados, representando o maior retrocesso na política ambiental das últimas décadas. Esse texto prevê uma total flexibilização das regras do licenciamento ambiental, enfraquecendo-as e ameaçando ainda mais a biodiversidade brasileira. Junto aos demais retrocessos – “a mãe de todas as boiadas” – seguirá para o Senado Federal e, caso tenha alterações, voltará à Câmara antes de, em caso de aprovação, seja enviada para sanção ou veto do presidente da República. Sem as normas de licenciamento adequadas, o que aconteceria se, de fato, fosse liberada a extração de petróleo próximo a Fernando de Noronha e o Atol das Rocas como a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e o governo sinalizaram? Já imaginou 14 áreas para a exploração dos hidrocarbonetos atuando próximas a três unidades de conservação e ecossistemas insulares únicos?
Não quero soar repetitiva, mas, se de fato, quisermos garantir a conservação dos cetáceos, assim como dos ecossistemas marinho e terrestre, precisamos urgentemente mudar nossos modos de produção e consumo, optar e batalhar por um outro sistema econômico e sociopolítico diferente deste que vivemos e, principalmente, transformar nossa forma de relacionarmos com a natureza.
Mas, nos próximos meses, precisamos urgentemente pressionar para que o PL nº 3.729 seja reprovado! #PL3729Não #LicenciamentoFica
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