
Por Reginaldo Cruz
Graduado em Administração e em Ciências Biológicas, é associado da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil) e sócio-administrador da Cruzeiro do Sul Consultoria Ambiental Ltda.
transportes@faunanews.com.br
É de fundamental importância que os programas de monitoramentos de fauna adotem um delineamento amostral focado na capacidade de obtenção de informações que permitam inferir a relevância dos impactos, da implantação e da operação, sobre a fauna silvestre.
Destaco aqui a questão da relevância pois toda ação humana causa impacto sobre a fauna. Entendo que os nossos estudos devem revelar qual ação humana tem potencial para comprometer, de forma significativa, a persistência de determinada espécie ou grupo de espécies em determinada área, ao longo do tempo.
Dentre os componentes principais do desenho amostral temos as espécies/grupos alvo, as áreas amostrais, a periodicidade (que pode ou não estar atrelada à sazonalidade), os métodos, os esforços e as formas de análise de dados, entre outros.
Ferrovia no Brasil central
Neste artigo, pretendo compartilhar a experiência, em andamento, no monitoramento de fauna durante a fase de instalação de uma ferrovia de grande porte no Brasil central. Vou abordar, especificamente, como fizemos a definição das áreas de amostragem de fauna terrestre. Ao longo do tempo, minha intenção é compartilhar, via artigos no Fauna News, sucessos e insucessos, neste e em outros programas, que possam contribuir na discussão e na tomada de decisão em outros projetos.
Essa ferrovia já vinha sendo monitorada e repetia o que julgo ser um erro comum a muitos programas de monitoramento de fauna: a definição das áreas amostrais contemplando, exclusivamente, remanescentes florestais e, ainda, mantendo as áreas amostradas para elaboração do diagnóstico de fauna, componente do EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente).
A amostragem exclusivamente em remanescentes florestais traz consigo vários limitantes ao desenho amostral, uma vez que exclui uma gama grande de espécies que estão presentes em outras áreas (entre as quais muitas ameaçadas de extinção) e desconsidera os aspectos da paisagem no qual o remanescente está inserido.
De outra parte, manter as áreas amostradas para a elaboração do diagnóstico raramente se justifica, já que são estudos com finalidades e tamanho de áreas de estudo distintos. O diagnóstico prima pela caracterização de uma área de estudo ampla, com indicação de suas fragilidades, para avaliação da viabilidade do empreendimento, incluindo a definição das alternativas locacionais e tecnológicas mais adequadas. Enquanto o monitoramento se presta para avaliação dos impactos decorrentes da implantação e da operação, com foco da área diretamente afetada e adjacências.
Nós desconsideramos integralmente o desenho amostral que vinha sendo utilizado e, a partir da definição das espécies e/ou grupos alvo, passamos a discutir onde amostrar. A escolha dessas espécies/grupos se deu pela avaliação de especialistas e, em parte, por determinação do órgão ambiental, e foi intimamente relacionada com a tipologia, localização e porte do empreendimento em estudo.
Para escolha das áreas, utilizamos os protocolos sugeridos no estudo de Assis et al. (2018) publicado no periódico Ecological Indicators com o título “Road Permeability Index: Evaluating the heterogeneous permeability of roads for wildlife crossing” (“Índice de permeabilidade de estradas: avaliando a permeabilidade heterogênea de estradas para travessia da vida selvagem”), que doravante chamarei apenas RPI.
O trecho da ferrovia a ser monitorado foi dividido em parcelas, cada uma contemplando um subtrecho de 10 quilômetros de via. A análise foi realizada a partir da colaboração de, no mínimo, três especialistas em cada grupo, visando a definição/seleção das parcelas que apresentavam maior probabilidade de ocorrência dos grupos-alvo.
O protocolo envolveu seis etapas: (I) definição das variáveis bióticas e abióticas disponíveis e importantes para os grupos/espécies-alvo; (II) divisão do traçado do empreendimento em parcelas (subáreas); (III) envolvimento de especialistas para seleção de variáveis que influenciam seu grupo/espécie-alvo; (IV) cálculo dos índices para cada grupo-alvo e subárea; (V) mapeamento dessas subáreas baseado nos índices de RPI; e (VI) prospecção in loco para verificar o atual estado de conservação das áreas pré-selecionadas e obtenção de autorizações de acesso.
Desse modo, foram geradas duas matrizes. Uma com a presença [1] ou não [0] das variáveis ambientais nas subáreas ao longo do traçado da ferrovia e outra com as respostas dos especialistas, informando se essas mesmas variáveis interferem positivamente na ocorrência do grupo/espécie-alvo [1], interferem negativamente [-1] ou não tem qualquer interferência [NA].
A seleção das variáveis ambientais se baseou na classificação do MapBiomas, com alguns detalhamentos realizados a partir de análise visual da imagem mais recente e imagens históricas disponíveis da parcela.
A análise forneceu três resultados: RPI_I (um vetor com o valor médio de RPI para todos os táxons em cada subárea), RPI_II (uma matriz com o valor RPI para cada táxon em cada subárea), e w_kj (uma matriz com o valor médio para cada variável (k) e táxon (j) considerando os locais onde k está presente). A função foi realizada com auxílio do software R Core Team (2020) e o script do cálculo está disponível no Apêndice 2 do artigo (ASSIS et al., 2019).
E toda essa análise foi realizada como parte do planejamento da área onde seria realizado o campo e permitiu uma redução considerável no nível de arbitrariedade na definição das áreas de amostragem. Além disso, permitiu que fossem definidas áreas extensas, com uma matriz similar, possibilitando alterações no local de amostragem ao longo do estudo, sem prejuízo às análises.
Aqui, cabe informar que quando são adotadas áreas fixas e de tamanho restritivo (como remanescentes florestais), em estudos de médio prazo, corre-se o risco de a área se tornar imprópria por sofrer alguma intervenção antrópica severa (supressão, alagamento, queimada) ou pelo proprietário, por algum motivo, em algum momento do estudo, declinar da autorização de acesso à área. Nesse caso, deve-se buscar autorização para amostragem em outra área e o aproveitamento dos dados já coletados resta prejudicado.

Foto: Emanuelle Pasa/Ana Carolina Ribeiro
Neste momento estamos trabalhando na análise dos dados obtidos nas duas primeiras campanhas de monitoramento utilizando o novo desenho amostral. De forma geral, a escolha das áreas se mostrou acertada, sobretudo para as capturas de mamíferos de médio porte para implantação de colares de radiotelemetria, com a captura de cinco indivíduos e a realização do download de dados de dois deles: um Cerdocyon thous (cachorro-do-mato), com mais de 1.100 pontos de localização coletados, e um Leopardus tigrinus (gato-do-mato-pequeno), com mais de 1.200 pontos.
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