Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena
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A coluna Universo Cetras publica o texto da colega Natalia Aparecida de Souza Lima, do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama de Manaus (AM), uma narrativa real, com pontos de vistas e enfoques diferentes, no qual os centros de triagem e de reabilitação figuram em uma rede de parceiros que faz o possível para proteção desses nossos queridos e cada vez mais raros personagens reais: os sauins-de-coleira.
Onze horas do Sábado de Aleluia de 2020. O Sol já estava quase a pino, mas parecia que a cidade ainda dormia. Como nos últimos dias, Manaus estava diferente, atípica, silenciosa. Poucos carros e pessoas circulavam pelas ruas. Grande parte da população estava recolhida às suas casas. As pessoas estavam assustadas e um tanto quanto aflitas e amedrontadas com informações divulgadas nas últimas semanas: um vírus novo, desconhecido e perigoso estaria circulando pelo mundo e corriam notícias de que já havia chegado ao Brasil e a Manaus. Especialistas diziam que a melhor forma de o evitar era diminuir a circulação de pessoas, o que explicava aquela calmaria das ruas.
Em meio à aparente tranquilidade daquele dia, trimmmmm, toca o telefone. Um acidente. As vítimas? Dois sauins-de-coleira. O acontecimento interrompeu o sossego de dois pais de família, a do senhor Sauim Ducke e a do senhor Ângelo, ambos moradores de bairros na zona norte de Manaus. A situação demandou também agentes ambientais para o resgate dos animais.
Senhor Sauim Ducke e senhor Ângelo eram vizinhos, mas suas casas eram muito diferentes. A do senhor sauim era enorme, uma mansão, com estruturas fortes e altas de madeira e teto macio e refrescante, verde de diferentes matizes. Retoques de amarelo, vermelho, lilás e muitas outras cores e tons em folhas e flores coloriam e exalavam aquele cheiro agradavelmente adocicado e refrescante ao ambiente. Frutos dos mais diversos tipos proporcionavam a ele e sua família sabores inacreditáveis. Sim, a casa do senhor Sauim era saborosa. E não era só isso, a casa da família Ducke era também palco de espetáculos musicais. Dia e noite, verdadeiras sinfonias de pássaros, insetos e muitos outros músicos e instrumentistas da floresta. Até mesmo sapos e pererecas cantarolavam e animavam as noites naquela grande, compartilhada e “chic” moradia, que tinha até nome, Residencial Reserva Adolpho Ducke. E o ar, aaahhh, o ar! Além de perfumado era leve, úmido, fresco, limpo… Passava macio pelo nariz e boca, fácil de inspirar e bom para inspirações da vida também. É verdade que a casa do senhor Sauim Ducke tinha lá os seus perigos, mas não se comparavam aos perigos da cidade, onde estava a casa do senhor Ângelo.
A casa do senhor Ângelo era um tanto quanto diferente e estranha aos olhos do senhor Sauim Ducke, a quem ela parecia ser pequena e cercada, limitando o ir e vir. Também parecia quente. As cores dela também não lhe agradavam; ele sentia que faltavam os tons relaxantes do verde e sombras aconchegantes para repousar, tirar um cochilo. Parecia faltar também certo frescor, que ele facilmente encontrava na sua mansão florestal. A casa devia ter algo bom, já que havia uma família vivendo lá. Mas aos olhos do senhor Sauim, o que de melhor ela tinha era o quintal vizinho à sua floresta.
Embora fossem vizinhos de longa data, o senhor Sauim Ducke e o senhor Ângelo não eram amigos próximos. Vivia cada qual em seus afazeres bem distintos. Mas se viam quase todos os dias, quando o senhor Sauim passeava com a família na floresta e amiúde parava no quintal do senhor Ângelo para um piquenique. Nos últimos dias, um dos pratos principais era um mamoeiro que havia rapidamente crescido ali. Mas aquele quintal era muito mais rico e apetitoso. Lá, a família do senhor Sauim Ducke podia se deliciar com um cardápio relativamente farto. De goma de cajueiro a frutos de biribazeiro, de goiabeira, de ingazeiro, havia também abiu e graviola, bacuri e murici, bacaba, açaí e buriti e tantas outras árvores e palmeiras a frutificar ali. E de quebra ainda conseguiam pegar uns insetos de sobremesa. Era um banquete que, além dos sauins, atraia muitos outros animais. Sabiás, bem-te-vis, sanhaçus, micos, guaribas e parauacus, e também tucanos e araçaris, papagaios, araras, curicas, periquitos e maracanãs… Muitos paravam por ali para se servirem de um bocado.
Naquela manhã de sábado, o banquete estava farto, tão farto que chamou a atenção de outra família de sauins-de-coleira que passava pela área, a família do senhor Sauim Adolpho. O encontro não foi nada amigável. O senhor Sauim Ducke e o senhor Sauim Adolpho se estranharam e começaram a discutir, a levantar a voz, a fazer cara feia e mostrar a língua um para o outro, cada qual tentando ser o dono daquele território saboroso e nutritivo, onde, naquele dia, havia um majestoso pé de biribá carregado de frutos. Meio à discussão e correria, o senhor sauim se distraiu e, embora fosse muito esperto e ágil, no nervosismo, deu um salto em falso e caiu no quintal ao lado, de onde, atentamente, um observador assistia aquele bate boca. De repente, ouve-se um grito terrível e agudo que foi ouvido por toda a redondeza e atraiu a atenção de moradores das casas vizinhas. Era o senhor sauim Ducke extravasando toda sua dor. O tal observador era o cachorro vizinho à casa do senhor Ângelo.
O senhor Ângelo havia assistido à distância ao final da confusão e, ao perceber a queda do sauim, foi imediatamente correndo ao seu socorro. Ao se aproximar, viu que o acidente era mais grave do que se podia imaginar. Havia um grande e assustador ferimento em uma das pernas do senhor Sauim, que se tremia todo, tamanha a dor e o medo que sentia. Uma das pernas estava em “carne viva” e a perda de sangue era visível. Mas a surpresa maior ainda estava por vir. Ao observar mais atentamente a situação, qual foi o susto: havia um volume estranho nas costas do senhor Sauim Ducke. Parecia uma corcunda, mas ela se mexia. Ohhhh não! Um filhote, um bebê sauim nas costas do senhor Sauim Ducke, que naquele dia estava a ensinar a seu filho algumas lições e segredos da vida na floresta.
A família do senhor Ângelo, que já estava preocupada com a situação, ficou também consternada. Eles sabiam que precisavam fazer algo para tentar salvar a vida do senhor Sauim Ducke e de seu filho. Foi quando o senhor Ângelo se lembrou de acionar a guarda ambiental para o resgate. E assim o fez. Tempos depois chegava um equipe de agentes ambientais para levá-los a um centro de atendimento de animais, uma espécie de casa provisória e de tratamento para animais feridos, maltratados, doentes ou em situação de risco e de vulnerabilidade. Tudo tinha que ser feito com muita rapidez, pois o caso era de emergência. Cinco, dez, quinze minutos poderiam custar a vida do senhor Sauim Ducke. Mas não havia médico veterinário de plantão no centro. Então, imediatamente uma rede de contatos de amigos e socorristas de animais foi acionada e veio um alento para aquela situação: o zoológico da cidade faria o atendimento.
Ao se deparar com a situação, o médico veterinário do zoológico que atendeu o senhor Sauim Ducke confirmou o que já se suspeitava: o quadro era grave, mas havia chance de revertê-lo. E assim os procedimentos foram iniciados. O senhor Sauim foi então para a mesa de cirurgia, onde foi anestesiado para tratar o ferimento. Tudo corria bem, quando foi percebida uma diminuição no ritmo cardíaco do paciente. Imediatamente, tentou-se estimulá-lo a voltar aos batimentos normais, massagem no peito foi feita na tentativa de reanimá-lo, mas não teve jeito, o senhor Sauim Ducke não resistiu e faleceu.
Todos ficaram tristes, afinal era ele um pai de família, com filho para criar. Além disso, era um sauim a menos sobre a Terra. Essa espécie está cada vez mais rara, tão rara que havia sido incluída dois anos antes na lista dos 25 primatas mais ameaçados de extinção do mundo, lista essa em que estão também orangotango, gibão, bugio, zogue-zogue, chimpanzé, lêmures, dentre outros.
Mas e agora? O que fazer? Ainda havia outra preocupação. O filhote! O que fazer com esse bebê?
O filho que o senhor Sauim Ducke carregava livre e alegremente nas costas, em sua morada verde, agora estava órfão. Mas ainda era muito pequeno e dependente. Às vezes ficava com o pai, outras com a mãe, que o amamentava, e por vezes ficava com seus tios ou irmãos mais velhos. Todos o amavam e colaboravam com cuidados e ensinamentos. Era o xodó da família. Mas de repente, estava sozinho no mundo, assustado, amedrontado. Não entendia o que se passava, era muito novo no mundo, mas certamente sentia que algo ruim havia acontecido. Gritava, vocalizava muito, como que a chorar. Um choro agudo que parecia um chamado, talvez na tentativa de que sua família o ouvisse. Chorou tanto que adormeceu após comer um pouco, tamanha era a fome no final daquele dia trágico.
Algo precisava ser feito por aquele filhote.
A primeira ideia foi ir até a casa do senhor Sauim Ducke, exatamente no local onde ocorreu o acidente, e tentar devolvê-lo à sua família. Caminho alternativo seria oferecer a ele cuidados na tentativa e esperança de que sobrevivesse e se desenvolvesse até que um dia fosse para algum local onde pudesse constituir uma nova família; um zoológico, por exemplo, ou quiçá a mesma floresta, se possível.
Estava para anoitecer e já não era mais possível encontrar, tampouco procurar pela família do falecido senhor Sauim Ducke. Eles costumam se recolher cedo para o sono, logo que o Sol se põe.
Aquela noite deve ter sido mesmo uma experiência inesquecível para aquele pequeno sauim. Tudo muito diferente. Ele foi colocado em uma caixa onde, ainda assustado, encontrou certo conforto em um bichinho de pelúcia. Ali ele se recolheu fugindo dos olhares daqueles seres estranhos que o miravam. No início da noite, no cantinho da caixa, embaixo do bichinho de pelúcia, o pequeno sauim exausto se acomodou e adormeceu mais uma vez.
No domingo o filhote acordou logo cedo e bem agitado. Vocalizava muito, mais uma vez aquele som choroso, que parecia um chamado de socorro enviado para sua família. Não queria comer. O café da manhã oferecido a ele parecia não ter lhe agradado, ao menos naquele momento. Isso era preocupante, afinal ele precisava de alimento.
Era preciso agir rapidamente. O filhote precisava ser levado o mais breve possível ao local onde havia sido encontrado no dia anterior. Havia esperança de que sua família estivesse prestes a passar por lá a procurá-los, já que essa era uma rotina deles. No despertar do dia, a equipe do centro de atendimento a animais, juntamente com os agentes ambientais que realizaram o resgate, se mobilizaram para essa missão.
Ao chegar no local foi dada uma notícia decepcionante: o senhor Ângelo informou que a família do senhor Sauim Ducke havia passado no quintal momentos antes e que pareciam muito agitados. Gritavam e se movimentavam muito. Estariam eles chamando o senhor Sauim e o caçulinha da família?
Mas a equipe não desistiu. Sabia que havia uma chance deles retornarem. E iniciaram o plano para atraí-los e assim tentar devolver o pequenino à sua família.
Com a ajuda de toda família do senhor Ângelo, o pequeno sauim foi colocado em uma gaiola, instalada no quintal exatamente em frente à floresta onde vivia junto com o senhor Ducke e família. Nesse momento, incrivelmente, o filhote mudou de comportamento. Parecia ter imediatamente reconhecido sua casa e começou novamente a emitir seu chamado, ou seu choro, de maneira mais intensa.
Dando continuidade ao plano, ao lado da gaiola foi colocada uma caixa de som emprestada do senhor Ângelo. Essa caixa foi acoplada a um equipamento que tinha gravação de sons, de vocalizações de outros sauins-de-coleira. Quando alguns desses sons foram tocados, imediatamente o pequeno sauim reagiu a eles, intensificando ainda mais sua vocalização, seus gritos.
O plano parecia ter começado a dar certo. A ideia era que ao emitir seu chamado, o pequenino sauim fosse ouvido por sua família, que então viria resgatá-lo, salvá-lo.
A equipe e a família do senhor Ângelo esperavam pacientemente pelo retorno do grupo. Todos se sensibilizaram com a história daqueles sauins, imaginando o que sentiriam se o mesmo tivesse acontecido às suas famílias.
Uma, duas, três, quatro horas. O tempo passava e nenhum sinal da família do senhor Sauim Ducke.
A tarde caminhava quando o pequeno sauim, cansado, adormeceu. A certa altura do sono, o pequeno estava em um sonho bonito, onde ouvia e sentia sua mãe, seus tios e irmãos se aproximando, como um coro de sons e chamados a procurá-lo. Subitamente, o pequeno sauim acorda. Não era um sonho. Lá estavam todos eles, saltitando, flutuando naquele mar verde a gritar por seu nome e do senhor Sauim Ducke. Ao percebê-los, o pequeno sauim começou a gritar, como a dizer: “Estou aqui! Estou aqui!”
O senhor Ângelo e toda família assistia de longe aquela cena fugaz da vida real. De repente, quase que num piscar de olhos, como num passe de mágica, lá estava o pequeno sauim passando de um colo a outro, ou melhor, das costas de um para as de outro, como que a agradecer e festejar aquele reencontro. Todos pareciam muito felizes. Sua mãe, tios e irmãos foram muito inteligentes, ágeis e habilidosos, haviam conseguido abrir a portinhola da gaiola e dela retiraram o caçulinha da família.
Aquele espetáculo de alegria foi assistido com orgulho por toda a equipe e pela família do senhor Ângelo, que tiveram aquela agradável sensação de dever e missão cumpridos.
Naquele triste Sábado de Aleluia, daquele estranho ano de 2020, o senhor Sauim Ducke havia partido de maneira trágica, triste. Mas no dia seguinte, Domingo de Páscoa, renovaram-se as esperanças de um futuro promissor para seu filho e sua espécie.
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