Por Melissa Alves
Médica Veterinária e ornitóloga, fundadora do Rotina Passarinheira, o primeiro curso on-line sobre observação de aves e Ornitologia.
observacaodeaves@faunanews.com.br
Existe uma sábia frase que me motiva nesta jornada empreendedora: “Conhecer para preservar”.
Desde muito pequena, sempre fui apaixonada por aves e não me orgulho em contar que essa paixão nasceu pelo íntimo e precoce contato que tive com uma arara-canindé (Ara ararauna). E claro, além da genética do amor por animais que herdei de meus pais. Essa arara, chamada Laura, foi meu xodozinho desde os 11 anos de idade. Como as aves de “bico torto” vivem por muitos anos, pude conviver boa parte de minha vida ao lado dela. A paixão foi inevitável. Com certeza, a Laura me motivou a construir meu futuro profissional fundamentado na medicina veterinária, com especialização em aves.
Graças a toda minha paixão e teimosia, fiz vários anos de cursinho (curso preparatório para o vestibular) até, finalmente, conseguir ingressar no curso de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo. Desde o comecinho da faculdade, participei de inúmeros estágios voluntários em zoológicos, criadouros e clínicas veterinárias. Com um pouco de sorte, e talvez merecimento, tive a incrível oportunidade de trabalhar, já no meu primeiro ano de formada, no maior centro de reabilitação de animais silvestres da América Latina, o Cras do Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo (SP).
Foi lá que eu conheci uma equipe de pessoas maravilhosas que me ensinaram muito; entre elas os biólogos Luccas Longo e Lilian Sayuri Fitorra e os veterinários Bruno Petri e a Dra. Liliane Milanelo, a coordenadora. Era muito gostoso trabalhar com essa equipe, pois, no fim das contas, eu tinha muito contato com a minha paixão: as aves. Afinal, cerca de 90% dos animais apreendidos e doados para esse centro de recuperação de animais silvestres, infelizmente, eram aves. Essa é uma dura e cruel realidade que retrata um perfil cultural muito forte na população brasileira: ter animais silvestres em gaiolas.
O tempo foi passando e eu fui sentindo que a minha forma de ajudar as aves, tratando e reabilitando, parecia muito ineficaz. Por melhor que fosse, o nosso trabalho em recuperar e devolver para a natureza uma grande quantidade de pássaros, o número de animais apreendidos e doados diariamente era assustadoramente maior. Essa realidade vivida diariamente me gerou uma enorme frustração: parecia estar “enxugando gelo”, pois eu não conseguia atuar na raiz do problema, que é a cultura de ter aves em gaiolas. No final das contas, o que “alimenta” o tráfico de fauna é essa cultura de manter aves silvestres em gaiolas: se tem alguém que vende pássaros, é porque tem alguém que compra.
Por isso, eu decidi parar de trabalhar no centro de reabilitação, uma decisão que foi muito difícil pra mim. Lá, meu contato com as aves era muito intenso, mas não era exatamente como eu gostaria que fosse. Então, passei a trabalhar mais com cães no canil dos meus irmãos, porém novamente não era exatamente aquilo que eu sentia ser o meu caminho.
Curioso pensar que meu caminho já estava traçado dentro de mim e eu nem havia percebido. Foi preciso tomar uma “rasteira da vida” para me dar conta da solução para minha realização profissional. Na verdade, havia uma atividade pela qual eu me apaixonei, meio que por acaso, no segundo ano da faculdade, em 1999, e que sempre esteve presente na minha vida, de forma muito intensa.
Naquele ano, participei de uma “passarinhada” (saída para observação de aves) com o Carlos Gussoni, que foi o coordenador geral do eBird por muitos anos. Aquele momento com ele me marcou demais, porque eu fiquei muito impressionada com a quantidade de espécies de aves que ele foi capaz de perceber a presença simplesmente por saber reconhecer suas vozes ou aparência. E o melhor de tudo, em um espaço tão comum e aparentemente sem grandes atrativos na época: as próprias imediações do campus de Pirassununga (SP) da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP.
Aquela passarinhada foi muito especial, porque me inspirou e motivou a sempre pesquisar e participar de todos os eventos de observação de aves que eu encontrava. O Avistar, por exemplo, que é o maior evento sobre observação de aves do Brasil, era sempre presença obrigatória pra mim; era um momento sempre repleto de contatos especiais e de encontros com amigos queridos.
Pois não é que “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”? Após muitos anos estudando e praticando, eu me tornei uma observadora de aves bastante experiente. Porém, não fazia muita coisa com esse conhecimento, somente alguns trabalhos pontuais, como o inventário da avifauna da Floresta Nacional de Passa Quatro (MG), além de algumas passarinhadas para trabalhar educação ambiental com as crianças que frequentavam a floresta em excursões com a escola.
Voltando para minha vida profissional, os trabalhos com cães foram ficando cada vez mais escassos e complicados durante a pandemia. Além disso, meus pais, com receio de adoecerem com o vírus da Covid-19, ficaram isolados em um “ranchinho de pesca” em Bataguassu (MS). Sem muita pretensão, comecei a ensinar algumas técnicas de observação de aves para eles, que se sentiam entediados e deprimidos com tamanho isolamento social por quase um ano.
Eu ajudava na identificação das aves, sugeria a instalação de aplicativos e ensinava como preparar água açucarada para beija-flores… Foi uma festa! Em pouco tempo, eles pareciam mais animados e interessados demais em toda aquela riqueza de aves que estava ali, mas que eles nem percebiam antes. Foi nesse cenário, que combinava minha frustração, problemas dos meus pais com o isolamento, e dificuldade em trabalhar presencialmente, que a ficha caiu: “Se eu posso ajudar meus pais a descobrirem, à distância, no on-line, a riqueza de pássaros que existe perto deles e não eram percebidos, eu também posso fazer isso com outras pessoas!”
Foi exatamente essa experiência tão rica e inspiradora que me motivou a organizar todo meu conhecimento sobre observação de aves e criar um método. Um caminho para ajudar pessoas como os meus pais – que não tem qualquer formação na área de biologia, veterinária ou sobre animais – a identificarem, por conta própria, pássaros na sua região. Tudo isso com o objetivo de trabalhar a observação de aves e perceber a grande diversidade de aves que existe em cada cantinho desse nosso Brasil lindo.
Além disso, sabemos que a percepção e interação com as aves é de extrema riqueza e importância, pois, além de comprovadamente combater o estresse e a ansiedade de quem pratica, essa atividade contribui com informações valiosas sobre as aves. Afinal, através da utilização de plataformas de ciência cidadã, como o Wikiaves e o eBird, compartilhamos registros e informações valiosas para a conservação.
No curso on-line Rotina Passarinheira, eu explico, de forma simples e didática, como utilizar as plataformas de ciência cidadã e as principais técnicas de observação de aves; como entender e memorizar as vocalizações; como e por que as aves migram; as noções importantes sobre como as aves são organizadas, seus nomes populares e científicos; além de um detalhamento aprofundado sobre as famílias de aves mais relevantes e presentes no dia a dia de todo observador de aves.
Conhecer e adquirir a habilidade de identificar aves pelo canto ou aparência, em casa ou pertinho dela, aumenta demais o nível de relacionamento com o meio ambiente e a percepção das aves. Além disso, revela o quanto elas, assim como nós, dependem de áreas verdes e naturais tanto para sobrevivência quanto para relaxamento e bem-estar. A final, não é à toa que bairros bem arborizados em grandes cidades são muito mais valorizados.
A prática da observação de aves em casa, no quintal e arredores, permite que cada observador, amador ou não, monitore ativamente e com grande eficácia vários pontos no país. Além de desenvolver relacionamentos positivos ao oferecer alimentos e água para as aves, o que pode render ricos momentos de contemplação ou belíssimas fotos, como a deste tucanuçu (Ramphastos toco) que fotografei praticamente em casa.
É justamente este despertar para o mundinho paralelo das aves, que está sim entre nós, que eu desejo para todos os brasileiros deste país. A atividade de observação de aves tem crescido bastante, mas ainda é um passatempo pouco conhecido no Brasil. Foi justamente por esse motivo que eu escolhi a forma on-line de distribuir esse conhecimento, já que, na atualidade, o maior foco de atenção das pessoas está nos celulares e nas redes sociais.
A forma como eu desenvolvo o meu trabalho entrega conhecimento de valor tanto de forma gratuita quanto paga, no caso do curso Rotina Passarinheira. Toda semana, às terças e quintas-feiras, às 15h, eu faço lives gratuitas nas redes sociais, como Instagram e YouTube. Nelas, eu passo muita informação de qualidade sobre observação de aves e sobre como começar nessa atividade de forma satisfatória e gentil com as aves, através de comedouros, bebedouros e da utilização de aplicativos e equipamentos acessíveis para o público em geral.
Diariamente, eu recebo elogios e agradecimentos de pessoas que conseguem grandes avanços e aprendizados na prática de observação de aves, somente com meus conteúdos gratuitos. E com o curso? Ah, é um verdadeiro deleite! Ver meus alunos “voando por aí”, viajando, contratando guias de observação de aves, como as alunas e amigas Clarisse Odebrecht, Valéria Boldrin Silva, Lívia Rebehy Queiroz, e os amigos César Caleiro e Emerson Guerra. Isso sem contar os alunos Teca Resende, Tássio Perotti e Sérgio Roberto Costa, que estão organizando eventos e guiadas para observação de aves.
Todos esses acontecimentos me enchem de alegria e esperança de, aos poucos, construir um bando misto de apaixonados por passarinhos que irão mudar a realidade de mais pessoas e passarinhos mundo afora. Tudo isso porque, de fato, eu acredito que #passarinhartransforma vidas e realidades.
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