Biólogo, mestre em Ecologia e analista e agente ambiental do Ibama
nalinhadefrente@faunanews.com.br
As leis devem observar o desejo da maioria, mas garantir o direito das minorias. A grande questão, então, reside em se distinguir direitos de desejos. Caçar animais silvestres e deles se alimentar seria um direito ou um desejo?
Na China, a caça e a venda para consumo de animais silvestres, até a Covid-19, foram amplamente aceitos ou, ao menos, basicamente tolerados. O uso de grande biodiversidade de animais silvestres expostos em mercados e sua manutenção precária e inadequada sob quesitos éticos e sanitários já constituíam riscos prévios e amplamente alertados. Porém, o consumo de animais silvestres continuou e, apenas em 24 de fevereiro de 2020, a China encaminhou solicitação à Convenção de Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), que publica a notificação nº 018/2020 em que se consta:
“… 1. Esta notificação está sendo publicada a pedido da China.
2. Em 24 de fevereiro de 2020, o Comitê Permanente da China do Congresso Nacional do Povo adotou uma decisão de eliminar o consumo de alimentos de animais selvagens para salvaguardar a vida e a saúde das pessoas. Esta decisão entra em vigor imediatamente.
3. A decisão reitera todas as atividades proibidas relativas à fauna silvestre já incluídas às normas relevantes existentes…
4. A decisão exige ainda que:
a) toda a fauna silvestre terrestre, incluindo aquela de valor significativamente ecológico, científico ou social e a de instalações de criação em cativeiro, deve ser proibida de ser usada como alimento; e
b) seja proibida a caça, o comércio ou o transporte de toda a fauna selvagem terrestre, caso sejam utilizados para comida…”
Quais as consequências do consumo indiscriminado de animais silvestres e a forma abjeta em que eram mantidos e mortos? Além da perda de biodiversidade e os maus-tratos, havia o óbvio risco de epidemia que, embora alertado, foi ignorado.
O desejo pela carne de animais silvestres prevaleceu e o consumo perdurou. A previsão se confirmou e a epidemia tornou-se pandemia mundial, que resultou na restrição voluntária ou imposta do direito de ir e vir, prejuízos econômicos, falência de empresas, alunos sem aula, medo, desabastecimento, transtorno social, empobrecimento individual e de nações, perda de empregos, sobrecarga do sistema de saúde, doenças, sofrimento e morte.
Quando o meu desejo prejudica o seu direito, eu extrapolo o contrato social. No caso da Covid-19, ficou evidente que o desejo a iguarias alimentares oriundas de animais silvestres sem a devida vigilância e controle sanitário extrapolou.
O mundo está sofrendo com as consequências de um comportamento de consumo de animais silvestres desnecessário no século 21. Esse comportamento já recebia duras críticas em razão do risco à biodiversidade e por submeter os animais a condições de maus-tratos. Agora ele foi o responsável por uma pandemia de efeitos globais e não podemos deixar de questionar e rever os desejos de poucos frente ao direito de muitos.
Também devemos nos lembrar que, embora na China as condições tenham sido mais propícias, no Brasil, desde 2013, é permitida a caça do javali e seu consumo ocorre sem qualquer análise ou vigilância sanitária. A Covid-19 já demonstrou o que ocorre quando os desejos de alguns se sobrepõe à segurança de todos.
Atender ao desejo de alguns caçadores não justifica o risco de uma nova epidemia, não acham?
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