Constipação: consequência de estratégia de sobrevivência em escorpiões

A palavra “natureza” está intimamente ligada à palavra “sobrevivência”. Para sobreviver, os organismos adaptam-se ao meio e desenvolvem habilidades e/ou estratégias para que obtenham sucesso. Assim podem continuar vivendo e passando seus genes adiante. Com isso, vários animais desenvolveram estratégias um tanto quanto inusitadas para garantir a sua sobrevivência. Diversas adaptações evoluíram e, como exemplos, posso aqui citar o mimetismo, a camuflagem, a produção de toxinas e a automutilação. Essa última é uma adaptação bem dramática e que demonstra bem os desafios de sobreviver na natureza.

A capacidade de perder uma parte do corpo é denominada de autotomia e é observada em diversos grupos animais, podendo essa parte do corpo ser regenerada ou não. A principal razão para isso acontecer é escapar de um predador, visto que a parte destacada continua se mexendo, o que ajuda a distrair o predador enquanto a presa foge.

No entanto, a falta de uma parte do corpo pode gerar consequências, como na locomoção, na capacidade reprodutiva ou até mesmo diminuir as chances de escape em um futuro evento de predação. Diferentes grupos animais desenvolveram essa habilidade, sejam vertebrados, como alguns lagartos, ou invertebrados, como polvos, aranhas e mais recentemente descobriu-se também acontecer em escorpiões do gênero Ananteres.

No mundo dos aracnídeos, temos um caso interessante de adaptação para a sobrevivência descoberto pela pesquisadora colombiana Solimary García-Hernández e pelo pesquisador brasileiro Glauco Machado: a dos escorpiões constipados. Não conseguir fazer “o número 2” é algo deveras incômodo, agora imagine se a sua sobrevivência dependesse disso! A particularidade da autotomia realizada pelos escorpiões Ananteres é que, diferentemente do que acontece em outros animais em que nenhuma parte vital do corpo é perdida, esses escorpiões ao perderem a “cauda” (por cauda leia-se aos últimos segmentos do abdômen) também perdem o aguilhão (estrutura usada para injetar o veneno nas presas) e o ânus. Sim, é isso mesmo que você leu. E isso corresponde a quase 25% do peso corporal deles!

Intrigados com esse comportamento, Solimary e Glauco decidiram estudar que efeitos isso teria nos curto e longo prazos para a alimentação e a reprodução de machos e fêmeas.

Para isso, os pesquisadores usaram como modelo escorpiões da espécie Ananteris balzanii Thorell, 1891. Esses escorpiões são encontrados no Brasil em áreas de savana no Centro-Oeste e no Sudeste, sendo ativos durante a noite quando saem para caçar. Como em todos os escorpiões, os machos são bem menores que as fêmeas, isto é, apresentam o que chamamos de dimorfismo sexual acentuado.

Que efeitos a perda da cauda teria para as atividades desses escorpiões? Por estarem mais leves após o evento, eles conseguiriam correr mais rápido? Se reproduziriam com sucesso? Quanto tempo conseguiriam sobreviver após a autotomia? Essas foram algumas das perguntas que os pesquisadores buscaram responder durante a pesquisa.

Consequências da perda da cauda

O experimento conduzido durante a tese de doutorado de Solimary encontrou que a perda da “cauda” não causa nenhum efeito no curto prazo para a locomoção dos escorpiões no que diz respeito a agilidade. Porém, no longo prazo foi registrado uma perda na performance locomotora em escorpiões machos (mas não de fêmeas), que curiosamente não está relacionada ao aumento da massa corporal devido ao acúmulo de fezes. Isso pode causar uma redução no sucesso reprodutivo enquanto esses escorpiões “sem cauda” estiverem vivos, visto que para se reproduzirem eles precisam sair à noite em busca de suas parceiras. Morrer por constipação leva alguns meses, então eles acabam tendo tempo suficiente para namorar.

Os escorpiões são animais vivíparos, ou seja, as fêmeas dão à luz filhotes de morfologia similar ao adulto, que ao nascerem sobem para o dorso da mãe, onde ficam por algum tempo até se dispersarem. No caso de Ananteris balzani, as fêmeas curiosamente demonstraram ser mais relutantes para autotomizar suas caudas nos eventos de predação. Devido ao acúmulo de fezes, as fêmeas “sem cauda” geraram menos filhotes do que as fêmeas não autotomizadas, o que demonstra um certo custo para a reprodução desses animais. No entanto, em um aspecto geral para a perpetuação da espécie, é mais vantajoso poucos filhotes do que filhote nenhum ao não escaparem de serem predadas, não é mesmo?

A pesquisa sobre os escorpiões que ficam sem fazer cocô para poder sobreviver rendeu a Solimary e ao Glauco em 2022 o prêmio Ig Nobel de Biologia, concedido pela revista Annals of Improbable Research, que premia os estudos mais inusitados em diferentes ramos da Ciência. O prêmio, um dos mais polêmicos na academia, foi recebido com bom humor pelos pesquisadores em algumas entrevistas concedidas. Após a autotomia, os escorpiões conseguiram sobreviver até sete meses (apesar da menor eficiência na caça), o que é um longo período quando consideramos a condição em que estão vivendo. Esse período é um fator chave para entender a evolução de um dos casos mais extremos de perda voluntária de uma parte do corpo já registrados na natureza. Portanto, a pesquisa não para por aí.

A bióloga Solimary ainda transformou os achados da pesquisa em uma revista em quadrinhos para que o público não-especialista possa entender melhor o trabalho. E para que a má reputação dos escorpiões seja desmistificada, uma vez que esses animais são importantes para o controle populacional de vários insetos e somente uma pequeníssima porcentagem realmente pode causar acidentes graves com seres humanos.

Referências

• “Automutilação como estratégia de sobrevivência”. Ciência Hoje.
• A graça do IgNobel. Revisgta Pesquisa Fapesp.
• Constipação que salva. Revista Pesquisa Fapesp.
• Estes cientistas da USP ganharam o Ig Nobel – e celebraram com pelúcia e HQ. Portal Uol.
• García-Hernández, Solimary; Machado, Glauco. Short and long term effects of an extreme case of autotomy: does tail loss and subsequent constipation decrease the locomotor performance of male and female scorpions?. Integrative Zoology, v. 169, p. 157-167, 2021.
• Live: Solimary García-Hernández e Glauco Machado no canal Meteoro Brasil.

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