Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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No artigo de julho de 2020 (“Qual a importância da nova moratória da pesca da piracatinga para a conservação dos golfinhos da Amazônia?”), abordamos o estabelecimento da nova moratória da pesca da piracatinga e a sua importância na conservação dos golfinhos da Amazônia. Para aqueles não familiarizados com o tema, faremos aqui um breve histórico dos eventos que culminaram no estabelecimento das duas moratórias e seus desdobramentos nesse período.
A pesca da piracatinga utilizando botos como isca teve início no final da década de 1990 e representou a maior ameaça para os golfinhos da Amazônia desde a chegada dos europeus no Brasil. Um número muito alto de botos mortos em pouco tempo para esse fim levou a significativa redução da população desses animais em várias áreas da sua distribuição. Denúncias e movimentos conservacionistas de proteção aos botos e sobre as populações humanas consumindo esse pescado culminaram com a suspensão da pesca da piracatinga por cinco anos, em um ato interministerial assinado pelos então ministros do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Pesca – Instrução Normativa (IN) Interministerial nº 06, de 17 de julho de 2014. Essa moratória foi encerrada em 1o de janeiro de 2020, sem que as metas estabelecidas tivessem sido alcançadas.
Questionamentos do Ministério Público do Amazonas e de grupos ambientalistas sobre o não cumprimento das metas propostas na IN levaram o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) a estabelecer uma nova moratória – IN nº 17, de 10 de junho de 2020 -, proibindo a pesca e a comercialização da piracatinga Calophysus macropterus (Lichtenstein, 1819) em águas jurisdicionais brasileiras pelo prazo de um ano, com início em 1o de julho de 2020. Ou seja, no primeiro dia de julho de 2021, essa moratória perderá sua efetividade.
Os termos estabelecidos, com exceção do tempo de execução, que foi drasticamente reduzido de cinco para um ano, foram similares aos da primeira moratória e propunham principalmente:
I – avaliar os efeitos da moratória para a recuperação das espécies de botos (Inia geoffrensis e Sotalia fluviatilis) e jacarés (Caiman crocodilus e Melanosuchus niger);
II – identificar técnicas e métodos ou alternativas produtivas ambiental, econômico e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e controle da atividade pesqueira da piracatinga (Calophysus macropterus).
O Conselho Estadual de Pesca e Aquicultura do Amazonas (Conepa-AM) se viu na posição de responder aos termos da IN instituída pelo Mapa e, para isso, estabeleceu um Grupo de Trabalho (GT) para avaliar e executar as demandas necessárias ao cumprimento da Instrução Normativa. Esse GT foi composto por membros do Conepa, órgãos do governo e convidados, tais como pesquisadores e instituições trabalhando com as espécies-isca, entidades de classe de pescadores, de frigoríficos de pescado, entre outros.
Como produto, foi elaborado um Plano de Ação da Pesca Sustentável da Piracatinga, com propostas de execução das ações necessárias ao cumprimento da referida IN, estabelecendo prazos e responsáveis por cada uma das ações. Os principais tópicos do plano foram:
1 – Monitoramento e avaliação da recuperação das populações do boto-vermelho (Inia geoffrensis) e do boto-tucuxi (Sotalia fluviatilis) e dos jacarés, jacaré-açu (Melanosuchus niger) e o jacaretinga (Caiman crocodilus).
2 – Identificação de técnicas e métodos alternativos para a pesca da piracatinga com viabilidade ambiental, econômica e social.
3 – Diagnóstico da biologia e do ciclo reprodutivo da piracatinga e a avaliação do seu potencial como espécie comercial.
4 – Avaliação dos impactos sociais e econômicos decorrentes da moratória.
5 – Desenvolvimento da estratégia de fiscalização e controle.
Porém, novamente não ficou estabelecido de onde viriam os recursos necessários para a execução de tais ações e se, uma vez obtido o recurso, o tempo disponível antes do final da moratória seria suficiente para a execução das ações propostas. Imediatamente ao final do período estabelecido para as atividades do GT-Conepa-AM, o Mapa criou um grupo de trabalho nacional (GT Mapa Piracatinga) para discutir, identificar técnicas e métodos sustentáveis e ordenar as atividades da pesca da piracatinga, utilizando como base o Plano de Ação da Pesca Sustentável da Piracatinga do GT-Conepa-AM.
Um novo Plano de Ação foi discutido e desenvolvido visando a retomada da pesca sustentável da piracatinga. Novamente ficou evidente que a falta de recursos e o prazo restante até o final da segunda moratória não seria exequível para a consolidação das ações necessárias estabelecidas nas IN’s e nos Planos de Ação. Assim, na falta de informações conclusivas oriundas de subsídios técnico-científicos para cumprir as condições estabelecidas pela IN SAP/Mapa nº 17, de 2020, a moratória deverá ser mais uma vez estendida para que se possa obter as informações que respondam às questões propostas nas IN e nos Planos de Ação.
Embora técnicos e especialistas do Mapa e as entidades de pesca do Estado defendam a liberação da pesca da piracatinga, não existem garantias de que, uma vez liberada, a prática de uso de botos e jacarés como isca não seja retomada. Sabemos que não existe fiscalização efetiva em grande parte da região, o controle e a fiscalização da comercialização do pescado são inadequados e se desconhece a origem e as quantidades de pescado processado pelos frigoríficos. Excetuando as espécies de peixes protegidas pelo defeso em certas épocas do ano, não existem outras formas de controle e fiscalização.
Como já indicado em outros artigos do Fauna News, botos são animais de vida longa, podem viver mais de 35 anos e demoram a atingir a maturidade sexual. As fêmeas alcançam a maturidade sexual por volta dos 10 anos de vida, com cerca de 180-200 centímetros de comprimento corporal, produzem um filhote a cada gestação, que dura aproximadamente 12-13 meses. Os filhotes nascem com comprimento entre 78-90 centímetros e 12 quilos e podem permanecer com a mãe entre dois e seis anos, sendo que o período de lactação é superior a um ano. Em média, o intervalo entre nascimentos é de quatro anos e meio, dependendo da idade da mãe e da sobrevivência do filhote. Com base nessas informações, fica evidente que um ou cinco anos não é tempo suficiente para reposição de indivíduos em uma população cuja retirada foi maior e mais rápida do que a sua capacidade de reposição. Portanto, a avaliação da recuperação das populações de botos como proposta pelos PA’s não será respondida em tempo tão curto.
Aqueles que querem pescar e comercializar a piracatinga devem ser os responsáveis para estabelecer as medidas de proteção aos botos e garantir que esses animais nunca mais sejam capturados para uso como isca ou para serem utilizados como recurso para a pesca. Enquanto essa garantia não for estabelecida e suas bases definidas, os botos não estarão seguros.
Os golfinhos da Amazônia, espécies ameaçadas de extinção e protegidos por lei, são valiosos como espécies sentinelas e bandeira, exercendo papel fundamental no equilíbrio e no funcionamento do ecossistema aquático da Amazônia. Entender e mitigar os impactos sobre esses mamíferos aquáticos é indispensável para a conservação do bioma amazônico como um todo.
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