Conflitos entre humanos e fauna em ambientes urbanizados

Em tempos de aquecimento global e em plena onda de calor, os animais silvestres também sofrem e ficam confusos. Além disso, com a perda de hábitat, vão tentando sobreviver como dá, muitas vezes em proximidade com as pessoas.

A personagem da história de hoje se trata de uma jararaca. Cena clássica: animal em dia de forte calor, parado, tranquilo, embaixo da árvore numa casa de condomínio.

Assim que o animal é identificado pelos moradores do imóvel, começa o desespero. Além do gato fofinho e gordinho que achou o animal muito interessante, a família tem um bebê.

Aí começam as chamadas: Polícia Militar Ambiental, bombeiros, defesa civil, prefeitura, vizinhos. Alguém tem que resolver a situação… e rápido!

Quem já passou por esse tipo de situação sabe bem como é. A Polícia Militar Ambiental, quando consegue atender o chamado, demora. Muitas são as causas dessa situação, que vão desde o efetivo limitado, falta de combustível para as viaturas e até mesmo falta de treinamento, pois na hora de capturar um animal peçonhento, tem que saber como fazer e ter o equipamento correto.

O corpo de bombeiros, que vem atendendo cada vez mais esse tipo de chamado, não tem, de fato, a obrigação institucional de fazer esse trabalho. Entretanto, acaba entendendo a ocorrência como desvio de função, pois essa é uma das atribuições específicas da Polícia Militar Ambiental. Especialmente se o chamado for em outro município – exatamente o caso da nossa história de hoje.

A defesa civil, em alguns municípios, até possui veterinário contratado para atender os chamados, mas normalmente, o fazem para animais domésticos. Daí a atender um chamado para capturar uma jararaca é, como se diz, “outros quinhentos”.

Em nossa história, os vizinhos são solícitos e um se oferece para dar fim no animal. Outro, biólogo, se oferece para auxiliar na captura e posterior soltura do animal.

Só lembrando que as jararacas são animais silvestres, portanto protegidos por lei. Além disso, não podemos esquecer que vivemos em um mundo onde tudo vai parar no “tribunal” das redes sociais. Assim, querendo ajudar, dando fim no animal, alguém pode se complicar, ficando exposto a comentários negativos e até mesmo a uma multa, uma vez que matar animais silvestres é crime.

O outro vizinho, biólogo, foi então acionado.

Em casos de captura de serpentes peçonhentas existe um equipamento básico para o manuseio dos animais com segurança. Nem todos os biólogos trabalham com serpentes, assim, quando você, meu querido leitor, chamar o seu amigo biólogo para ajudar, lembre-se que ele pode não ter o equipamento adequado em mãos, caso exato da situação aqui descrita.

Então, chega o biólogo.

A captura da jararaca

Tensão entre o animal e os moradores porque, claro, de todas as autoridades acionadas nenhuma tinha aparecido até aquela hora.

A cena: material do biólogo para capturar a serpente improvisado, calor de 32º, alta expectativa dos moradores para que a serpente fosse removida de pronto… ou seja, tudo tranquilo!

Na primeira avaliação do animal, o biólogo calmamente começa a informar sobre suas condições: jovem, provavelmente um macho, enfim, tentando apaziguar a situação e fazer com que a serpente se posicionasse melhor para a realização da captura.

Não sei se já tentaram fazer captura de serpente: elas são lisas, esguias. Passam por qualquer frestinha e, por serem peçonhentas, calculam muito bem cada movimento, sempre posicionando a cabeça de frente para o adversário. Mexe de cá, mexe de lá e, por fim, a serpente está em posição de captura. Mas com o laço improvisado, ela “passa batido” e o biólogo, calmamente, quase pegando o animal com a mão. A família, apreensiva, solta um “nossa, vai pegar com a mão?!”.

Na hora exata, chega o técnico municipal responsável, acompanhado por um funcionário da defesa civil e com um gancho também improvisado (um cabo de madeira e um gancho feito de resto de rolo de pintura). Ele coleta o animal em uma lata! Sim, amigos leitores, uma lata bem fechada, com um calor de mais de 30º. A lata é então colocada na caçamba de uma caminhonete, sob o sol.

Só para dar mais um detalhe: dentre as jararacas, a identificação taxonômica da espécie é complexa, só podendo ser feita por especialista. É preciso considerar que existem espécies endêmicas, que só vivem em lugares restritos, sendo, portanto, animais raros.

E o nosso animal segue na lata…

O biólogo, vendo a situação altamente precária para a cobra, sugere: por que não soltar em uma área de mata nativa protegida e aqui próxima? O funcionário da prefeitura, então, responde: não, como foi aberto um chamado, vamos levar ao Corpo de Bombeiros para identificação.

Detalhe: o quartel da corporação, além de não possuir especialista em serpentes, fica localizado a cerca de 20 minutos de carro da ocorrência. Tudo isso a pleno sol!

Aí, o morador pergunta: “mais vai soltar onde?” No exato momento, o funcionário da prefeitura começa a bater em retirada e o morador insiste: “Espere aí. Vai soltar onde? A gente quer saber!”

O biólogo, com a missão quase cumprida, se afasta e pensa em voz alta: “Vai chegar cozida no destino…”

Por fim, os responsáveis pela captura, após algum tempo, mandam imagens via WhatsApp da soltura do animal. Vivo, certo? Mais ou menos…

Fauna silvestre e os municípios

Essa história, cada vez mais comum, mostra como a fauna é um verdadeiro estorvo para os municípios. Seja pela falta de estrutura, pela pressão dos munícipes ou das redes sociais, seja pela falta de articulação dos órgãos públicos. Enfim, a fauna é uma verdadeira “batata quente”! No caso da nossa história, um centro de triagem de animais silvestres (Cetas) mais próximo está a 150 quilômetros de distância! Agiu mal o funcionário da prefeitura? De forma nenhuma, já que veio prontamente atender a família em apuros! Falhou o biólogo com equipamento improvisado? Vejam que uma simples serpente mobilizou mais de seis pessoas, dois veículos e tempo para diversos telefonemas! Por sorte, essa serpente saiu viva, mas normalmente, o destino dela seria outro.

E só um aviso para aqueles que preferem a morte de todas as serpentes: elas têm uma importante função ecológica. Temos eliminado sistematicamente os predadores naturais das serpentes e atraído roedores para nossas casas por descarte inadequado de resíduos domésticos. Sem contar a erradicação do seu hábitat natural. Ou seja, o que plantamos, estamos colhendo.

O Brasil é signatário do Marco Global da Biodiversidade Kunming Montreal, adotado durante a 15ª Conferência das Partes (COP 15) da Conferência sobre Diversidade Biológica, que determina Objetivos para 2050 e Metas de Ação para 2030. Destaco as seguintes metas no que tange a “reduzir as ameaças à diversidade biológica”:

• Meta 1 – Lograr que para 2030 todas as zonas estejam sujeitas a planejamento espacial participativo integrado que leve em conta a diversidade biológica e/ou processos de gestão eficazes, abordando as mudanças no uso da terra e dos oceanos, a fim de aproximar de zero a perda de superfícies de suma importância para a biodiversidade, incluindo os ecossistemas de grande integridade ecológica respeitando, ao mesmo tempo, os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais.
• Meta 2 – Lograr que para 2030 ao menos 30 por cento das zonas de ecossistemas terrestres, de águas continentais, costeiras e marinhas degradadas estejam sendo objeto de uma restauração efetiva, com a finalidade de melhorar a biodiversidade e as funções e os serviços dos ecossistemas, a integridade ecológica e a conectividade.
• Meta 3 – Conseguir e tornar possível que, para 2030, ao menos 30% das zonas terrestres, de águas continentais e costeiras e marinhas, especialmente as zonas de particular importância para a biodiversidade e as funções e os serviços dos ecossistemas, sejam conservados e manejados eficazmente mediante sistemas de áreas protegidas ecologicamente representativos, bem conectados e governados de forma equitativa, e outras medidas eficazes de conservação baseadas em zonas geográficas específicas.

 Viver em um meio ambiente harmonioso e equilibrado não é luxo, é direito e dever!

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