Por Vera Maria Ferreira da Silva¹ e Lucas Spinelli²
¹Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
²Biólogo marinho e mestrando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), atuando no Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, realizado pela Associação Amigos para Proteção do Peixe-Boi Amazônico
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Recentemente, escrevemos um capítulo de um livro sobre o comportamento sexual e sociossexual em golfinhos. Tentamos diferenciar comportamentos muitas vezes interpretados de forma equivocada, confundindo o que vem a ser brincadeiras, comportamentos sexuais, sociossexuais ou até mesmo comportamentos provocados pelo tédio ou pelo excesso de energia no dia a dia desses animais.
Durante as pesquisas de literatura que fizemos, ficamos fascinados pelo tema e pela riqueza de informações e relatos sobre homossexualidade ou bissexualidade nas mais diversas espécies de animais. Considerada durante muito tempo como aberração no comportamento sexual em humanos, a homossexualidade no reino animal é um fenômeno quase universal e já foi registrada em mais de 1.500 espécies, desde os mamíferos aquáticos (cetáceos e pinípedes) a primatas e invertebrados.
De acordo com diversos autores trabalhando com esse tema, os animais usam o sexo para satisfazer praticamente todos os tipos de necessidades, desde o simples prazer à resolução de questões sociais das mais diversas naturezas e complexidades.
O estudo dos bonobos (Pan paniscus), espécie de chipanzé de pequeno porte que vive nas florestas da bacia do Congo, na África, é um dos exemplos mais clássicos e conhecidos desse comportamento sexual. Tanto machos quanto fêmeas se relacionam sexualmente com indivíduos do mesmo sexo, sendo mais frequente a relação entre fêmea-fêmea, principalmente como forma de evitar conflitos.
Comportamentos dos golfinhos
Nosso enfoque, no entanto, foi quanto ao comportamento sexual dos mamíferos aquáticos, particularmente os golfinhos. Os golfinhos são animais que vivem muitas vezes longe da costa e em águas turvas. A grande maioria dos seus comportamentos ocorre embaixo d’água, dificultando a observação e a correta interpretação daquilo que eles estão fazendo, como e com quem estão fazendo. Os poucos minutos que permanecem na superfície da água e desenvolvem alguma atividade não são suficientes, na maioria das vezes, para uma correta interpretação do comportamento, na sua classificação e até mesmo na identificação dos atores.
Embora bastante controversos, estudos de golfinhos em cativeiro, mesmo considerados alterados e estereotipados devido a própria condição do cativeiro e muitas vezes devido à composição da estrutura social no tanque, ajudaram na descrição e elucidação de alguns desses comportamentos difíceis de serem observados na natureza.
Assim, foi possível diferenciar os comportamentos de brincadeiras, dos sexuais e dos sociossexuais, e verificar como cada grupo etário ou sexual se comportava. As brincadeiras, definidas como ações feitas dentro de um contexto social, em grupo ou solitário, são, em grande proporção, desenvolvidas por filhotes e jovens. Elas são diferentes das atividades de alimentação ou de reprodução, por exemplo, e não estão relacionadas com a sobrevivência do indivíduo na natureza, mas, sim, com a maneira encontrada para sentirem certo tipo de prazer ou de auto recompensa, ocorrendo sempre com o animal em estado de relaxamento.
Já quando tratamos de comportamentos sexuais, nos referimos a qualquer atividade relacionada diretamente à reprodução e ao acasalamento, com forte pressão hormonal. Os comportamentos sociossexuais, por sua vez, são aqueles que precedem as atividades sexuais como as preliminares e o cortejo sexual.
Quando integramos o comportamento social com o comportamento sexual, verificamos que os animais são capazes de interagir entre si, com ambos os sexos e com diferentes classes de idades. A interação desses comportamentos revelam como os animais formam as alianças que favorecem o estreitamento dos laços de cooperação, dominância e hierarquia.
Foi interessante perceber que em um contexto sociossexual, os golfinhos se comportam de maneira muito parecida com os primatas e conosco, seres humanos. A busca por uma possível percepção ou sensação de prazer fica bem evidente, com inúmeros relatos sobre golfinhos em cativeiro que se masturbam e têm relações sexuais com indivíduos de ambos os sexos.
A cópula entre os golfinhos sempre foi descrita como uma ação rápida e sem aparente demonstração de prazer. No entanto, um estudo recente sobre a anatomia e morfologia da genitália de fêmeas de golfinho-nariz-de-garrafa revelou a presença de clítoris e que esta é uma região altamente inervada. Concluiu-se que, assim como em outros mamíferos, nos golfinhos essa é uma estrutura que responde ao toque e é extremamente sensível e que sim, certamente a fêmea sente alguma forma de prazer ao toque e durante a cópula. Esse achado mudou completamente a percepção dos pesquisadores quanto ao comportamento sexual e sociossexual desses animais.
Estudos de longa duração com golfinhos-nariz-de-garrafa na natureza e com registros subaquáticos foram feitos em Shark Bay, na Austrália, no entorno da ilha Mikura, no Japão, e em Fernando de Noronha, no Brasil, com os golfinhos-rotadores. Nesses locais, a água é extremamente límpida, permitindo o registro subaquático dos comportamentos de brincadeiras, sexuais e sociossexuais desses golfinhos no seu habitat.
Entre os comportamentos mais comuns registrados para esses golfinhos de vida livre estão as interações táteis, nas quais um golfinho (iniciador) toca a área genital do outro (receptor) com a ponta de sua nadadeira peitoral ou caudal, com o rostro ou melão e fazendo contato genital com genital (montar). Esses contatos podem ocorrer acompanhado de ereção, com ou sem penetração do pênis na genitália de outro animal, em interação macho-macho ou macho-fêmea.
Nos rios da Amazônia, as águas são turvas e com baixíssima visibilidade, dificultando o registro do comportamento dos botos-vermelhos (Inia geoffrensis) e do tucuxi (Sotalia fluviatilis), que são limitados a poucos segundos de atividades na superfície da água. Entre os comportamentos registrados, podemos citar o sociossexual denominado object carrier, que consiste em um boto macho carregando um objeto de origem natural, como galhos, gravetos, vegetação flutuante e até blocos duros de argila na boca, muitas vezes batendo esse objeto contra a superfície da água com movimentos violentos da cabeça. Esse mesmo indivíduo às vezes nada de maneira ritualizada, girando verticalmente em seu próprio eixo, com a cabeça acima da água, com a boca aberta e segurando o objeto em questão. Com o intuito de chamar a atenção das fêmeas, o macho, durante esse comportamento, é cercado por outros machos e observado de perto por fêmeas adultas.
O boto-vermelho também é conhecido por interagir com objetos inanimados e animados, tais como pequenas tartarugas, arraias, peixes-elétricos, pirarucus, filhotes de peixe-boi da Amazônia e até mesmo com filhotes da própria espécie. Existem registros de interação com lixo descartado nos rios, como peças de roupas, e até com uma anaconda (Eunectes beniensis). Na descrição dessa interação, dois botos machos mataram a serpente, sendo que essa atividade pode ser considerada uma atividade sociossexual, já que aparentemente deixou esses indivíduos excitados sexualmente e com a exposição dos pênis.
Mesmo com as difíceis condições ambientais, hoje sabemos um pouco mais sobre o comportamento sexual do boto-vermelho. Nessa espécie, os machos têm a tendência de serem mais ativos, agressivos e de se envolverem em interações mais intensas, com relatos de ocorrência de comportamentos homossexuais tanto em cativeiro quanto em vida livre, com registros e filmagens de comportamento homossexual macho-macho, com cópula e toques. Esses comportamentos, por sua vez, podem estar relacionados com o estreitamento de laços entre os indivíduos, na formação de alianças, no estabelecimento e na manutenção de relações hierárquicas, mas também como prática sexual para melhorar a performance quando for ocorrer o acasalamento com fins reprodutivos.
Apesar dos esforços, a diversidade dos comportamentos que os cetáceos realizam e a real função ainda não são bem conhecidos. Não está claro como esses comportamentos evoluíram para ajudá-los a se adaptarem às novas situações e como podem ter aumentado a capacidade de sobrevivência e reprodução. O que podemos perceber é que estes animais carismáticos conquistaram um mundo totalmente diferente do nosso, mas que, apesar disso, ainda são inúmeras as semelhanças entre nós, os golfinhos e outros mamíferos.
Literatura sugerida
– Hill HM, Dietrich S, Cappiello B (2017) Learning to play: A review and theoretical investigation of the developmental mechanisms and functions of cetacean play. Learn Behav 45:335–354. doi: https://doi.org/10.3758/s13420-017-0291-0
– Mann J (2006) Establishing trust: social-sexual behaviour and the development of male-male bonds among Indian Ocean bottlenose dolphins. In: Sommer V, Vasey P L (ed) Homosexual Behaviour in Animals: an Evolutionary Perspective. Cambridge University Press, Cambridge. p 107-130
– Martin AR, da Silva VMF, Rothery P (2008). Object carrying as socio-sexual display in an aquatic mammal. Biology Letters 4:243-245. doi:https://doi.org/10.1098/rsbl.2008.0067
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