Bióloga com mestrado e doutorado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A paleontologia foi o foco de sua pesquisa no doutorado.
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De acordo com a mitologia católica, na região costeira da Inglaterra, em uma cidade chamada de Whitby, existiu uma santa chamada Hilda (614-680 d.C.; Figura 1), que protegeu essa região do feroz ataque das serpentes, representações terrenas do demônio cristão, as enrolando e as transformando em pedras! Não é incomum encontrar nessa região estranhas rochas como as da foto abaixo.
No entanto, com o avanço da Ciência, houve o entendimento de que muitas dessas rochas, que pareciam conchas, animais e plantas, eram na verdade restos de organismos que viveram no passado e foram soterrados, e não de criaturas místicas, armadilhas da natureza ou magias de petrificação como se pensava. Foi Agricola – George Bauer – (1494-1555) o primeiro a reconhecer essa origem orgânica de tais materiais – materiais esses que hoje em dia chamamos de fósseis!
Mas, apesar de tais conhecimentos terem anulado os milagres da santa Hilda, esses fósseis de organismos enrolados foram cobras que existiram no passado de nosso planeta? A resposta é não!
O exemplar da fotografia acima, por exemplo, consiste em uma concha cuja uma de suas extremidades foi esculpida na forma de uma cabeça de serpente tentando reforçar o milagre da santa.
Mas, pera aí… Conchas?
Pois é. Essas “cobras petrificadas” são, nada mais nada menos, do que conchas de organismos pré-históricos chamados de Amonites. No caso das cobras da santa Hilda, mais especificamente, são pertencentes a animais jurássicos (~180 milhões de anos atrás) do gênero Hildoceras (a similaridade do nome da santa e do gênero é proposital, sendo uma homenagem direta a sua história como a primeira tentativa conhecida na região de se explicar o que eram esses fósseis).
Mas afinal, o que é um Amonite? Eles são moluscos, cefalópodes, com concha externa, formalmente conhecidos como Ammonoidea e que viveram nos mares de nosso planeta do Devoniano (~409 milhões de anos) até a extinção de todas suas linhagens simultânea a ultima grande extinção em massa que eliminou os dinossauros não avianos, pterossauros e répteis marinhos há cerca de ~65 milhões de anos ao fim do período Cretáceo.
Os fósseis desse grupo consistem basicamente em suas conchas externas fossilizadas contendo, algumas vezes, em seu interior, a tinta que usavam para despistar predadores similar à observada em lulas, por exemplo. Suas conchas eram extremamente modificadas externamente em termos de ornamentação de espécies para espécies, mas todos apresentavam internamente sua concha segmentada em septos formando câmaras, que eram conectadas por um tubo de tecido orgânico chamando de sifúnculo (Figura 5). Na câmara maior, o corpo do animal era acomodado enquanto nas demais câmaras, por meio da atuação ativa do sifúnculo, elas eram preenchidas ou esvaziadas de gases visando controlar a flutuação do animal dentro da coluna d’água.
Ao contrário do que poderíamos intuir, os Ammonite são evolutivamente mais aparentados aos Coloidea (grupo que inclui lulas, polvos e sépias) do que ao grupo dos cefalópodes de concha externa atual, os Nautiloides!
No Brasil, possuímos inúmeras espécies de Ammonite que ocuparam diversas regiões de nosso país em diferentes períodos, correspondendo a diferentes porções que outrora foram cobertas por mares. Infelizmente, abordar todas as espécies desse grupo aqui no Brasil seria algo muito além do objetivo deste artigo, mas o convido para que busque conhecer mais sobre tais espécies. Aqui quero destacar duas espécies provenientes de rochas imediatamente relacionadas às camadas de irídio que marcam a extinção do Cretáceo, sendo, portanto, representantes das últimas espécies do grupo no Brasil: são a Pachydiscus (Pachydiscus) neubergicus e a Diplomoceras cylindraceum.
Esses fósseis foram recuperados em rochas da localidade Poty, no município Paulista (PE). São rochas atribuídas a Formação Gramame, que contempla um período de poucos milhões de anos antes da extinção. Portanto, nessa época, essa região de Pernambuco correspondia a mares relativamente rasos.
A extinção desse fascinante grupo está diretamente relacionada às mudanças de temperatura, Ph (acidez) e, consequentemente, distribuição de oxigênio e microrganismos que formam a base da cadeia alimentar dos mares. Atualmente, decorrente do aquecimento global acelerado pela ação humana bem como a extensa poluição dos mares, nós estamos rapidamente reproduzindo um cenário de mudanças nos nossos mares e oceanos que poderão, em breve, gerar extinções da fauna marinha similares ao que descrevemos para o Cretáceo.
A acidificação dos mares com o embranquecimento dos corais é apenas um exemplo didático e visual das consequências de nossas ações no planeta. Espero que quanto mais aprendamos sobre a riqueza da fauna do passado e do drama relacionado a suas extinções, nós, seres humanos, sejamos capazes de nos sensibilizar e conscientizar que o planeta não pertence somente a nossa espécie. Todos organismos nele presente devem ser igualmente respeitados e não simplesmente usados e descartados como fazemos.
Espero que tenha gostado e até mês que vem!
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