Por Karlla Barbosa
Bióloga, observadora de aves, mestra em Conservação Ambiental e Sustentabilidade e doutora em Zoologia
observaçãodeaves@faunanews.com.br
As aves nos ensinam muito sobre comportamento, principalmente sobre o quanto a parceria do casal pode ajudar na criação dos filhotes. Por isso, neste mês de março, quando comemoramos o Dia Internacional das Mulheres, quero contar alguns mitos e curiosidades sobre as fêmeas das aves brasileiras.
1 – A fêmea sempre cuida do ninho
Nem sempre é a fêmea que cuida do ninho. O trabalho pode ser compartilhado. Vou dar alguns exemplos:
No caso do urutau (Nyctibius griseus), apesar de parecer que apenas um dos indivíduos fica lá o tempo todo, trabalhos científicos já mostraram que o casal se reveza no cuidado com os filhotes. Um membro do casal pode cuidar de dia enquanto o outro cuida de noite. Bela parceria, não?
Já o casal de bem-te-vi-rajado (Myiodynastes maculatus) divide os cuidados com os filhotes. Enquanto a fêmea fica no ninho chocando, o macho fica de prontidão próximo atento ao menor sinal de predadores ou competidores do território. Inclusive, eu já presenciei uma cena interessante, quando para minha pesquisa eu capturei uma fêmea e coloquei anilhas nela. Quando a soltei, ela ficou quieta pousada num galho, se recuperando do susto. O macho, aparentemente preocupado com a situação, ia ao ninho para cuidar dos filhotes e depois até a fêmea para se certificar que estava tudo bem. Ele fez isso até ela estar calma o suficiente para retornar ao ninho.
Um outro exemplo bastante emblemático e conhecido é o da ema (Rhea americana), em que o macho é o maior responsável pelo ninho. Após a fêmea botar os ovos, ele começa os cuidados com a incubação, gastando mais da metade do seu tempo com essa tarefa, podendo chegar até mais de 90% da sua rotina diária nos cuidados com os ovos nos dias que antecedem a eclosão. Além disso, muitas vezes ele cuida de ovos que podem ser de várias fêmeas diferentes. Algo parecido acontece com os machos de jaçanã (Jacana jacana), que podem cuidar de ovos que não são seus, uma vez que as fêmeas podem ter vários parceiros e somente um dos machos é quem cuida. Nesses e tantos outros casos, pai é realmente quem cria.
2 – As aves são fiéis aos parceiros
Nem sempre. Um estudo mostrou que mesmo aves consideradas monogâmicas, como as araras, podem ter diferentes parceiros ao longo da vida ou até em uma mesma estação reprodutiva, pois nem todos filhotes de uma mesma ninhada eram realmente frutos desse casamento. Além disso, quando morre um dos parceiros, o que ficou pode encontrar uma outra “alma gêmea”.
3 – As aves são fiéis ao local de reprodução
Na vida das aves migratórias, a fidelidade ao local de reprodução ano após ano é um fator no mínimo interessante. Segundo algumas pesquisas realizadas na América do Norte, no geral os machos das aves são mais fiéis ao seu território do que as fêmeas. De fato, existem benefícios claros para as aves que são fiéis ao seu local de reprodução, principalmente pelo fato do conhecimento prévio do local e de onde buscar recursos. Além disso, como o fator “tempo” para as aves migratórias é crucial, se um membro do casal se atrasar para retornar, o parceiro pode acabar procurando por outro. No meu estudo, verifiquei que com as tesourinhas (Tyrannus savana) e bem-te-vis-rajados, os machos retornam da migração para o mesmo local com maior frequência quando comparados às fêmeas. Encontrei também casais que se separaram no retorno e encontraram novos parceiros. Eu vejo isso como um indicativo, mas ainda precisamos de mais estudos com as espécies brasileiras sobre o assunto.
4 – O macho do joão-de-barro prende a fêmea no ninho
Você já deve ter ouvido falar que “macho traído do joão-de-barro prende a fêmea no ninho”. Mas isso não é verdade. A casinha (ninho) dessa espécie é muito elaborada e protegida contra predadores. O joão-de-barro (Furnarius rufus) geralmente não reutiliza o ninho no ano seguinte. Então, após criarem seus filhotes, fêmea e macho abandonam o ninho velho e outras espécies de aves e até insetos acabam utilizando. O fato de espécies como as abelhas fecharem a porta do ninho com cera pode dar a impressão que algo ficou lá dentro. Mas com certeza não foi a fêmea do joão-de-barro.
5 – Os machos são coloridos e as fêmeas são sem graça
Muitas espécies de aves têm machos e fêmeas muito parecidos (aos nossos olhos), ou seja, não apresentam dimorfismo sexual aparente. Porém, vemos outra porção de espécies em que os machos são coloridos e as fêmeas têm cores menos chamativas. Na verdade, o papel da fêmea pardinha (sem cores vivas) é super importante para a proteção e camuflagem enquanto ela está no ninho. Já os machos são geralmente o sexo mais colorido pois passaram por longos processos de seleção sexual ao longo da evolução, se tornando cada vez mais vistosos e chamativos para as fêmeas. Os machos devem, portanto, competir pela chance de acasalar, como no interessante caso dos tangarás (Chiroxiphia caudata), em que vários machos dançam para ver quem conquista a fêmea. Claro que isso não é uma regra e sabe-se que umas algumas espécies inverteram os papéis, com os machos incubando os ovos e as fêmeas defendendo territórios e lutando entre si pelo acesso aos machos.
No caso das aves de rapina, uma curiosidade interessante é que as fêmeas são maiores que os machos, sendo assim “mais vistosas”. Existem algumas hipóteses para isso, mas boa parte dos pesquisadores dizem que machos investem muita energia durante o período reprodutivo e as fêmeas competem por eles. Já as fêmeas tendem a ser maiores para a proteção dos filhotes e conseguir os companheiros. Os machos menores, por sua vez, seriam escolhidos pelas fêmeas porque são mais habilidosos em conseguir alimento.
Assim como na nossa espécie, a vida das aves é cheia de curiosidades, comportamentos complexos e que nos surpreende a cada dia. Mesmo se tratando das espécies mais comuns, podemos tirar grandes lições de companheirismo, parceria e respeito aos outros. Esse é justamente um dos grandes prazeres da observação de aves: descobrir novas coisas, diferentes histórias e comportamentos curiosos. E você pode encontrar isso tudo mesmo nos seus companheiros de jardim… Então, observe as aves!
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