Por Rogério Bertani
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia pela Universidade de São Paulo (USP). Especializado em aracnídeos, é pesquisador do Instituto Butantan
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Após a disseminação mundial de um vírus mortal, recebemos notícias alarmantes de nuvens de gafanhotos se espalhando pela África e pelo sul da América do Sul. Estaria o apocalipse aproximando-se? Também tem aparecido em redes sociais, com relativa frequência, filmagens de “chuvas de aranhas”, às vezes acompanhadas por comentários apocalípticos. Nessas filmagens é possível ver, em final de tarde, a silhueta de aranhas como que flutuando pelo céu, às dezenas. E a imaginação vai longe.
https://www.youtube.com/watch?v=Ek69z8khdF8
As aranhas são predadoras e, na maioria, canibais. Quando se encontram, geralmente a aranha maior ataca e se alimenta da menor. Mas existem exceções. Em algumas famílias de aranhas existem espécies em que essa agressividade foi sendo trocada por um comportamento de tolerância, de forma que podem construir teias comunitárias e caçar juntas. Não é o mesmo nível de organização que ocorre nos insetos sociais como formigas e abelhas, quando ocorre especialização e divisão de tarefas e os indivíduos chegam a ser morfologicamente diferentes (soldados, rainhas, operárias). Portanto, por não haver divisão de tarefas, essas aranhas não são consideradas verdadeiramente sociais. Mas o seu comportamento é muito distinto do das demais parentes.
A espécie que aparece nas filmagens pertence à família Araneidae, conhecida pelas belas teias geométricas que constroem fixadas à vegetação, e ao gênero Parawixia, que contém 28 espécies, distribuídas do México à Argentina. Porém, somente uma espécie desse gênero, e de toda a família, tem o comportamento “social”: a Parawixia bistriata. Essas aranhas chegam a três centímetros de tamanho. Quando jovens são bem escuras com uma serie de manchas vermelhas nas laterais do dorso do abdome. Os adultos são escuros com uma ou mais faixas brancas ao longo do abdome e manchas vermelhas mais apagadas e em menor número. Mas há bastante variação de cor.
As Parawixia bistriata ocorrem em áreas abertas da Bolívia, Paraguai, norte da Argentina e, no Brasil, em áreas de Cerrado. Nunca em florestas úmidas. Constroem teias comunais de 2 a 5 metros do solo. Durante o dia ficam todas juntas em um refúgio sombreado na vegetação. A colônia pode conter 30, 40 indivíduos. Ao anoitecer, elas se movem por fios grossos e longos, previamente construídos, que podem chegar a 30 metros de comprimento. A partir desse fio, cada indivíduo começa a tecer sua própria teia geométrica. Aguardam que alguma presa fique aderida à teia, e, se a presa for de pequeno tamanho, a própria aranha irá predá-la. Se a presa for grande, as outras aranhas mais próximas vão se juntar para poderem dominar a presa. Dessa forma, podem se alimentar de presas relativamente grandes. Existem relatos de terem predado até mesmo pequenas aves.
Em sua famosa viagem ao redor do mundo, Charles Darwin relata o encontro no Brasil de grandes aranhas negras com marcas cor de rubi no seu dorso e comportamento gregário. Disse que as teias eram construídas verticalmente e espaçadas por cerca de 60 centímetros e eram todas presas a um fio maior, que unia todas as teias, fazendo com que a parte de cima dos arbustos fossem tomados pelas teias. “Esse hábito gregário, em um gênero tão típico de aranhas, que são tão sanguinárias e solitárias que até mesmos os dois sexos se atacam, é um fato muito singular”, escreveu Darwin. Um outro naturalista, o militar e explorador espanhol Félix de Azara, em 1809, mais de cinquenta anos antes de Darwin, também já havia encontrado e relatado o hábito gregário da espécie em viagens pelo Paraguai.
As observações desses flagrantes da natureza estavam limitadas, antigamente, ao homem do campo ou aos naturalistas, viajantes e exploradores que relatavam suas descobertas em livros e publicações cientificas. Ou até mesmo em relatos orais, que passavam por gerações. A internet hoje em dia permite o compartilhamento de imagens desses flagrantes, tornando essas informações acessíveis à maioria da população, o que é extraordinário.
No final, a tal “chuva” ou “invasão de aranhas” é um fenômeno natural e comum nas áreas abertas da América do Sul onde vive a espécie Parawixia bistriata e que vem sendo relatado desde os tempos dos primeiros naturalistas, como Azara e Darwin. Assim como as epidemias, que acompanham o ser humano por toda a sua existência, ou as nuvens de gafanhotos, que são conhecidas desde tempos bíblicos.
Porém, se há um aumento ou agravamento em alguns desses fenômenos naturais nos tempos atuais, eles certamente estão relacionados à atividade humana, pelo aquecimento global, desmatamento e contato cada vez maior do ser humano com animais silvestres. Pelo desequilíbrio ambiental e extermínio de seus predadores, os gafanhotos podem se reproduzir a ponto de formarem grandes nuvens que devastam as lavouras por onde passam. Entre os seus predadores, estão justamente as aranhas, como a Parawixia bistriata. Em vez de ameaça, aranhas podem ser justamente a solução, pois ajudam a controlar a população de insetos que atacam a lavoura e transmitem doenças, mantendo o equilíbrio ecológico necessário à vida no planeta.
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