Centenas de anfíbios são mortos a cada quilômetro de rodovia por dia

Os anfíbios são o grupo mais ameaçado, com 41% das espécies em risco de extinção, segundo a lista vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). No Brasil, já temos espécies consideradas extintas, inclusive. Rodovias e ferrovias, por exemplo, aparecem entre as principais ameaças nesta lista.

A maioria das espécies desse grupo apresenta uma fase do seu ciclo de vida que é larval aquática, o que faz com que os indivíduos adultos e juvenis encarem alguns desafios de chegada e saída dos corpos d’água a cada estação reprodutiva. Com isso, a chance de eles encontrarem uma estrada ao fazerem esses deslocamentos pode ser grande.

Já temos evidências que demonstram os efeitos negativos das rodovias para população de anfíbios anuros, especialmente para espécies com taxas reprodutivas mais baixas e tamanhos corporais menores. Mais do que isso, já sabemos também que os anfíbios são um dos grupos faunísticos mais afetados pelos atropelamentos. Apesar disso, tanto a literatura científica quanto os estudos exigidos para obtenção de licenças ambientais de rodovias ainda negligencia (e muito!) esse grupo.

Um dos principais problemas relacionados à amostragem de anfíbios em rodovias é que o seu pequeno tamanho corporal resulta em baixa detecção pelos amostradores e rápida remoção das carcaças pelo tráfego de veículos, exigindo assim amostragens a pé e com curtos intervalos de tempo entre as ocasiões. Essa exigência representa um desafio para amostragem em rodovias extensas ou em amplas redes de rodovias.

Proposta para  mitigação de mortalidade de anfíbios em rodovias
Pensando nesses desafios, elaboramos uma proposta de esquema amostral e analítico para priorizar trechos de duas rodovias no sul do Brasil que devem receber mitigação para esse grupo de animais. O legal é que esse esquema não é apenas uma exploração científica, mas foi elaborado no âmbito dos estudos ambientais realizados dentro do Programa de Proteção e Monitoramento de Fauna do Plano Básico Ambiental para a renovação das licenças de operação de rodovias sob concessão da EGR (Empresa Gaúcha de Rodovias). Tudo amparado por discussões e aval do órgão ambiental licenciador competente (neste caso, o órgão ambiental do estado do Rio Grande do Sul, a FEPAM). Ainda, o artigo que descreve toda a proposta foi recentemente publicado em uma edição especial sobre “Ecologia de Rodovias sobre Anfíbios e Répteis” da revista Frontiers in Ecology and Evolution.

O esquema apresenta seis etapas:

1 – A pré-seleção de segmentos de 100 metros para realizar a amostragem baseada na proporção de áreas úmidas no entorno da estrada;
2 – A amostragem a pé replicada no espaço e no tempo com um protocolo de duplo-observadores dependentes;
3 – A extração de variáveis que podem afetar as taxas de atropelamento, a detecção e a persistência das carcaças;
4 – A aplicação de modelos matemáticos robustos para estimar a taxa diária de atropelamentos, considerando que existem erros na detecção das carcaças e que elas podem ser removidas pelo tráfego;
5 – A avaliação da estabilidade da paisagem no entorno dos segmentos, inferindo que quanto mais estáveis, melhor eles são para a efetividade das medidas de mitigação a longo prazo; e
6 – A priorização dos segmentos baseada nas maiores taxas de atropelamento e nos menores valores de conversão da paisagem do entorno.

Os principais resultados desse esforço foram:

– Selecionamos 5 quilômetros para a amostragem (do total de cerca de 100 quilômetros);
– Estimamos uma média de 136 anuros atropelados/km/dia nos 50 segmentos amostrados.
– Quanto mais áreas úmidas e menos áreas urbanas no entorno dos segmentos, mais carcaças foram encontradas inicialmente.
– Em dias chuvosos, o número de carcaças encontradas entre as ocasiões de amostragem foi maior.
– A probabilidade de persistência da carcaça no asfalto foi maior à noite e menor em locais com alto volume de tráfego.
– Foram priorizados para receber mitigação dez segmentos, o que correspondeu a aproximadamente 1% da extensão total das rodovias.

A grande novidade do trabalho foi considerar a heterogeneidade espacial e temporal da detecção e da persistência de carcaças para estimar quantos animais morrem e identificar onde morrem mais. Assim, conseguimos obter uma taxa de atropelamentos (indivíduos/tempo/por espaço) para um tempo conhecido (no caso por dia).

Um alerta: ainda é muito usual dentro de estudos ambientais e até acadêmicos, obter uma taxa de atropelamentos a partir das carcaças observadas durante o monitoramento. Entretanto, os animais observados naquele dia correspondem ao número de animais remanescentes acumulados por um período que desconhecemos. Portanto, calcular taxas diárias (ou outra dimensão temporal) a partir dessas observações é um erro. Embora seja uma novidade em rodovias, essas abordagens já são mais fortemente difundidas em outros empreendimentos, como parques eólicos.

O que falta para nos preocuparmos com os anfibios?
Escuto frequentemente em diversos fóruns de discussão e em mesas com tomadores de decisão que não temos ainda condições de atacar o problema dos anfíbios e seus desafios de amostragem. Que ainda não há como se preocupar com os anfíbios, se ainda temos problemas com animais maiores, mais facilmente detectáveis, mais carismáticos e que possuem um incremento de preocupação com a segurança viária humana. É inquestionável que precisamos reduzir as colisões com animais grandes para também assegurar a vida das pessoas. Entretanto, meu questionamento é quando será a hora dos anfíbios?

Por que ainda negligenciamos o grupo que é o mais afetado pelos impactos das rodovias? Talvez, quando começarmos a nos preocupar, as populações (ou até as espécies) já estarão extintas. Portanto, tenho algumas sugestões de como podemos avançar, mas deixo para um próximo texto, pois esse já se estendeu demais. Por enquanto, convido a todas e todos para pensamos juntos nos caminhos possíveis.

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