Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Entre as décadas de 1980 e 1990, época em que era bem menos comum jogadores brasileiros serem contratados por equipes de futebol da Europa, o centroavante paulista Antônio de Oliveira Filho fez muito sucesso no Napoli, da Itália. Apelidado de Careca, embora ostentasse vasta cabeleira, ele teve como um dos seus parceiros no time italiano o cabeça-de-área mineiro Ricardo Rogério de Brito, o Alemão. Como nem Careca era careca e nem Alemão era alemão, fica claro que não é sempre que os nomes refletem a realidade.
No que se refere à nomenclatura das entidades biológicas, essa falta de conexão com a realidade ocorre, eventualmente, em relação aos chamados nomes comuns. Que, ao contrário do que ocorre com os nomes científicos, não são designados dentro de regras previamente estabelecidas [1]. Aí a gente chega em um ponto bem legal de se conversar pois, por um lado, as Ciências Biológicas têm princípios consolidados a partir dos epítetos científicos, mas, por outro, são os nomes comuns que estabelecem pontes entre os saberes científicos e populares, representando, muitas vezes, a chamada linguagem do povo. Mesmo que não apresentem uma lógica ou coerência acadêmica – exagerando no exemplo, como no caso do Careca e do Alemão. E está tudo bem quanto a isso.
Há quem considere importante se tentar impor algumas regras à forma como as unidades taxonômicas são conhecidas fora dos espaços acadêmicos [2]. Nessa linha, foi publicado um livro [3] que compila os nomes comuns de insetos e ácaros do Brasil, alguns deles propostos observando-se critérios como importância econômica e designação dos hospedeiros. Muitos desses nomes, embora tidos como comuns, não são espontâneos, o que, naturalmente, não os torna verdadeiramente populares. A conversa é boa, a intenção idem, mas é sempre bom não esquecer que nomes comuns fazem parte do patrimônio cultural, estando presentes em crenças e outras manifestações populares. E, eventualmente, não precisam mesmo de regras.
De minha parte, admito, às vezes tenho uma vontade danada de dar uma de dono do mundo e meter umas regrinhas ditatoriais nos nomes comuns. Tipo no caso dos felinos pintados em suas versões melânicas. Ao contrário do que, brilhantemente, nos ensina a mestra Márcia Denise Guedes [4], no meu mundo ideal o nome comum pantera-negra seria usado exclusivamente para os leopardos pretos da África e da Ásia, enquanto nossas belas onças melânicas seriam simplesmente chamadas de onça-preta. Como não é assim que a banda toca e eu nada apito na vontade popular, os exemplares pretos da Panthera onca são popularmente chamados até de tigre! Aliás, o bichão tem quase cem nomes comuns em português ou aportuguesados [5]. Não há regra que cubra isso tudo e é melhor mesmo nem se botar regras.
Insetos com nomes de equinos
Assim, na maior parte das vezes, eu gosto mesmo é de me divertir com os nomes comuns, suas peculiaridades e incoerências. Como agora, em que trarei à prosa insetos que ostentam nomes de mamíferos, mais especificamente uma família deles: os Equidae (ordem Perissodactyla). Mas por que logo a família dos cavalos? Sei lá, talvez por ser um grupo animal de grande aceitação popular e importância histórica, o que pode tornar mais interessante a brincadeira. Afinal, o cavalo (Equus ferus caballus) é um dos parceiros mais antigos da humanidade, cuja domesticação começou há uns 6 mil anos [6].
Alguns insetos que têm menção a outros bichos nos seus respectivos nomes comuns já foram citados neste espaço. Um deles é o cavalo-do-cão [7], também chamado de marimbondo-cavalo e marimbondo-mata-cavalo, forma como são designados grandes marimbondos da família Pompilidae (ordem Hymenoptera), como os integrantes do gênero Pepsis, dentre outros. Cavalo-do-cão é um ótimo nome para começar nossa brincadeira, até mesmo por mencionar logo dois mamíferos, por sinal muito populares: além do cavalo, o cão. No caso do marimbondo, “cão” não seria alusivo ao nosso popular cachorro doméstico, mas ao demônio [8]. Assim, o nome cavalo-do-cão seria devido à suposta ferocidade, na percepção popular, do inseto.
Ainda dentro da ordem Hymenoptera, além dos temidos marimbondos, as abelhas sociais sem ferrão da espécie Ptilotrigona lurida (Apidae) são comumente associadas a cavalos, sendo popularmente chamadas de borá-cavalo e vorá-cavalo, especialmente na Amazônia [3].
Interessantemente, outro grupo de insetos também recebe o nome comum de cavalo-do-cão ou cavalo-de-cão: as libélulas, integrantes da ordem Odonata. Esses nomes seriam mais comumente utilizados na região Norte, sendo algumas outras denominações populares de conotação negativa cavalinho-do-diabo, cavalo-do-diabo, cavalo-de-judeu, cavalinho-de-judeu e cavalo-judeu, as três últimas claramente preconceituosas. Para contrabalançar com algo de percepção mais positiva, esses fantásticos predadores são também conhecidos pela alcunha de cavalinho-de-são-jorge [3]. Segundo narra o professor Zundir Buzzi, no já citado livro Nomes populares de insetos e ácaros do Brasil, a associação com o diabo parece estar ligada ao fato da libélula recém metamorfoseada em adulto carregar às costas a exúvia (exoesqueleto descartado) da última ecdise (muda).
Aqui entre nós, já vi por incontáveis vezes libélulas em voo e, confesso, nunca percebi nelas restos da exúvia. O máximo de associação com montaria que consigo visualizar é no momento da última muda, que acontece logo depois da ninfa de último estádio sair do corpo de água doce onde passou os estágios imaturos. Em um determinado momento da ecdise, o adulto em emergência ainda fica ligado ao exoesqueleto da ninfa, podendo dar a impressão de serem dois seres distintos, um cavalgando o outro.
No mundo dos insetos, há outros “cavalos” bem destacados. Como os louva-a-deus, integrantes da ordem Mantodea, também denominados popularmente como cavalinho-de-deus e cavalinho-de-nosso-senhor. E também a mutuca-de-cavalo ou mosca-de-cavalo, Tabanus occidentalis, bem como outras moscas da família Tabanidae, da ordem Diptera. Classificadas nessa mesma ordem, só que em outras famílias, a espécie Neivamyia lutzi (Muscidae) é comumente conhecida como mosca-do-cavalo, enquanto os integrantes do gênero Lutzomyia (Psychodidae) são chamados de péla-égua. Nome comum também usado para algumas espécies de besouros (ordem Coleoptera) da família Staphylinidae. Finalizando esse passeio pelos “cavalos” do mundo dos insetos, os manés-magros, gafanhotos da família Proscopiidae (Orthoptera), são eventualmente chamados de alma-de-cavalo [3].
Com burro no nome
Além dos cavalos, outros equídeos emprestam nome a insetos, com destaque para o burro. Vale destacar que o nome comum burro costuma ser usado tanto para a subespécie Equus africanus asinus, também conhecida como jumento, asno, jerico e jegue, quanto para o híbrido Equus ferus caballus x Equus africanus asinus. O burro dá nome a alguns besouros, tais como: burrico (família Carabidae); burrinho (família Staphylinidae, além de Naupactus xanthographus, da família Curculionidae); burrinho-da-macieira (Naupactus cervinus); burrinho-cinzento (Epicauta cinerea – Meloidae), burrinho-da-batata (Epicauta adspersa), burrinho-da-pimenteira (Epicauta montei); burrinho-da-batatinha ou burrinho-das-solanáceas (Epicauta atomaria); e burrinho-zebra (Epicauta excavata) [3].
Zebra
Além do burro, o último besouro mencionado faz alusão à zebra, nome comum de três espécies de equinos africanos (Equus grevyi, Equus quagga e Equus zebra) tipicamente listrados, o que confere a eles uma grande popularidade. Como também são bem populares os exemplares da espécie Colobura dirce (ordem Lepidoptera, família Nymphalidae), a borboleta-zebra, grande-zebra ou, simplesmente, zebra, bem comum por todo o Brasil.
Outra borboleta “zebrada” é a zebrinha, Arawacus meliboeus (Lycaenidae). Por fim, encerrando nosso passeio pelo mundo dos insetos com nomes de equinos, também é nomeado em alusão às zebras o soldadinho Membracis foliatafasciata (Hemiptera: Membracidae), a zebrinha-do-cacaueiro [3].
Referências
[1] Da-Silva, E.R. 2018. Flores com nome de bicho, bichos com nome de flor. In: Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. (ed.). II Mostra de Biologia Cultural – O Canto em Flor. A Bruxa 2 (n. especial 2): 50-51.
[2] https://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine/documents/folha66_separata1_pt.pdf. 2021
[3] Buzzi, Z.J. 2009. Nomes populares de insetos e ácaros do Brasil. Curitiba: Editora UFPR, 630 p.
[4] https://faunanews.com.br/2021/08/25/ybambe-ybambe-wakanda-tambem-e-aqui/
[5] Papavero, N. 2017. Nomes populares conferidos à Panthera onca (Linnaeus, 1758) (Mammalia, Carnivora, Felidae) no Brasil. Arquivos de Zoologia 48(2): 37-93.
[6] https://www.youtube.com/watch?v=rmU1jgnitO4&list=PLVk9Yf7CmhR0atKoXPcoJd9iZ_dqzolTa&index=1
[7] https://faunanews.com.br/2022/02/16/o-cavalo-do-cao-que-tentou-capturar-o-homem-aranha/
[8] Cascudo, L.C. 2012. Dicionário do folclore brasileiro. 12ª edição. São Paulo: Global Editora, 756 p.
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