Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Ações de soltura normalmente se referem a avifauna e, em particular, a passeriformes. Eventualmente pode acontecer um resgate de algum mamífero ferido, por exemplo, por choque de alta tensão ou atropelamento e se o animal sobrevive e está apto, poderá vir a ser solto. Mas nesses casos, o período de recuperação sempre é longo e o resultado para o animal é incerto. Isso sem considerar a problemática de filhotes resgatados que crescem em ambientes artificiais e em contínuo contato com seres humanos. Portanto, raros são os casos em que mamíferos saudáveis e de vida livre são, de fato, reintroduzidos com sucesso em ambiente compatível com a espécie e em tempo ágil, evitando alterações comportamentais.
Hoje, nosso artigo é sobre um desses casos de sucesso (pelo menos até o momento, ufa!).
Campos do Jordão (SP) é uma cidade muito procurada na época de inverno por suas paisagens, lojas, seus hotéis sofisticados e restaurantes exclusivos. E, aparentemente, não são só os humanos que acham isso. Até uma puma (Puma concolor) já foi registrada passeando tranquilamente durante uma madrugada no centro do Capivari, bairro turístico da cidade. O personagem de nossa história fez o mesmo, só que inovou, pois entrou em um restaurante em plena manhã de temporada, no mesmo Capivari da Puma.
O curioso é que tudo começou no meu celular, pois passei a receber via grupos de mensagem, imagens quase que em tempo real do animal passeando tranquilamente nas árvores da calçada. Em determinado momento, ele resolveu descer e ficar na frente do restaurante. Claro que, a essa altura, o caso já tinha ganhado a proporção necessária, com duas unidades móveis do Corpo de Bombeiros já a postos no local.
O animal, vendo a crescente movimentação, entra no restaurante! Nesse momento, a equipe de bombeiros entra também e começa a promover a captura do animal usando uma rede. Porém o bugio, que é uma espécie tranquila, não estava para brincadeira e rasga a rede com os dentes. Foi nesse momento exato que uma pessoa da equipe tentou contê-lo com a rede danificada. Resultado: mordida espetacular no pulso.
Uma ambulância foi chamada para fazer o atendimento do animal humano e o animal não humano foi finalmente contido em uma jaula. Em seguida, a equipe do Corpo de Bombeiros entrou em contato com a Fazenda Renópolis e, cerca de uma hora e meio depois de finalizada a captura, o bugio finalmente iria ter um momento de calma e tranquilidade.
Seria mesmo? Pois foi aí que começou um segundo capítulo da história de nosso bugio: obter o atestado sanitário de saúde para uma futura soltura.
Nem bem o animal tinha sido colocado no viveiro, começaram as chamadas telefônicas. A primeira foi de um pesquisador do Instituo Adolfo Lutz, mas depois vieram as da chefe de enfermagem e responsável pelo Posto de Saúde que havia dado o atendimento ao animal humano mordido pelo não humano. Finalmente veio a do responsável pelo serviço de Zoonoses da cidade. Ufa! Quanta gente preocupada com a saúde do nosso bugio.
Explico: primatas não humanos têm as mesmas patologias que humanos podem manifestar e, particularmente em tempos de Covid, todo o cuidado é pouco. Sem contar a questão da febre amarela e o efeito que o surto dessa doença teve sobre a população de bugios.
Mas como estava o “nosso bugio”?
As primeiras 24 horas são sempre definitivas para o início da avaliação de um animal recém capturado. Nosso bugio chegou em um dia muito frio e, claro, estava esgotado – afinal, quem não estaria nas circunstâncias de sua captura? Foi ao longo destas 24 horas que esta bióloga que vos escreve ganhou alguns novos cabelos brancos… Mas passadas as tais 24 horas, o “nosso bugio” já estava interessado na comida e tinha urinado e defecado sem demonstrar qualquer indício de patologia instalada. Cada dia a mais de observação indicava que o animal estava saudável e com score corporal adequado. Mas claro que nada disso tem valor se não é possível atestar de fato essa condição.
Assim, passamos à terceira etapa: o atestado sanitário. Nesse sentido, após a avaliação já feita diariamente e a de mais dois veterinários diferentes, ambos com experiência na espécie em questão, foi elaborado e enviado à todas aquelas instituições que nos haviam contactado, logo no início da chegada do animal, o tão importante “atestado sanitário”.
Agora, passado o tempo mínimo de quarentena (incidente da mordida) e obtido o ok sanitário, começamos a planejar a parte da soltura do animal
Nossa primeira preocupação foi definir a soltura branda como a escolha mais adequada, ou seja, quando se abre uma área do viveiro onde o animal tem livre acesso tanto ao interior do como à área exterior. Outro ponto importante é definir qual a data da soltura e essa é uma consideração importante, já que o mês de julho é o mais movimentado na região. Assim, escolhemos uma segunda-feira bem tranquila!
Outra questão é o registro da soltura, porque você prepara o cenário e sai de perto para dar maior tranquilidade ao animal. Assim instalamos duas câmeras trap em locais estratégicos. Finalmente, instalamos um comedor de apoio em uma das árvores próximas da saída do viveiro para ajudá-lo a se ambientar e seguir na direção “certa” da floresta adjacente à área do viveiro. Se você notou a presença da palavra “certa” em destaque é porque ocorrem solturas na quais o animal vai da direção “errada” e, às vezes, até a direção “totalmente errada” – o que na prática significa recaptura e aí simplesmente temos que recomeçar todo o processo novamente. Mas como aconteceu como “nosso bugio”?
Logo quando começamos a preparar o cenário da soltura, ele, o “nosso bugio”, começou a prestar uma incrível atenção na movimentação, pois, claro, algo diferente estava acontecendo. O mais legal foi observar que seus olhos, pois apesar do bugios terem um comportamento controlado e tranquilo na maior parte do tempo, os olhos dele acompanhavam tudo, ou seja, era como se ele estivesse fazendo força para manter a pose cool. Aí só faltava abrir a porta final de contenção dando acesso ao exterior. Fizemos isso e saímos rápido da cena. Então foi a vez de ele sair tranquilo, sem pressa e avaliando bem a nova situação na qual se encontrava, finalmente livre! Em algum tempo, alcançou o comedor na árvore, alimentou-se tranquilamente e saiu para a copa mais alta das árvores.
E aí, caro leitor, acha que a aventura acabou? Não mesmo! Agora vamos monitorar a área de floresta adjacente e, quem sabe, fazer até uma observação direta do animal.
Soltura é isso. O que antes era o “nosso bugio” voltou a ser o bugio de todos, livre… Pelo menos até a próxima aventura na qual ele se envolva. Só nos resta esperar que tenha um desfecho legal como na história de hoje.
– Leia outros artigos da coluna SEGUNDA CHANCE
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)