Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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O trabalho com soltura de animais silvestres é uma atividade que permite adquirir uma visão de 360 graus, tanto sobre a questão da conservação como das ameaças que pairam sobre a nossa biodiversidade. Nesse sentido, um dos grandes problemas é o ataque e a predação da fauna silvestre por animais domésticos, em particular, por cães. E vejam, leitores, que paradoxalmente, apesar de trabalhar com fauna silvestre, sou uma fã de cães, tenho vários, mas todos em canis e sob uma “liberdade vigiada”. Nada de ficarem soltos perseguindo fauna silvestre.
Hoje vou apresentar a história de um cervídeo e do seu encontro com cães domésticos.
Então vejamos, em uma certa cidade turística do Sudeste do Brasil, bombeiros e agentes da Polícia Militar Ambiental são acionados. Os agentes resgatam o animal, um cervídeo, com os seguintes detalhes: em pleno feriado, claro, e o horário, no final de tarde.
Nessa hora, obviamente, nenhum dos famosos órgãos ambientais do Estado ou da federação estão abertos! Mas a ONG “legal” está aberta e funcionando! O animal chega e é acomodado em recinto adequado para a espécie. Como os leitores sabem, os cervídeos são um grupo cujo manejo é muito complexo por ser muito suscetível a estresse, podendo facilmente e rapidamente vir a óbito por essa causa, desenvolvendo um quadro denominado de miopatia da captura.
Os agentes que trouxeram o animal, aliviados por terem “resolvido” o problema, o observam sair sozinho da gaiola de transporte. Alguém pergunta: Mas e esse sangue? “Ah, o animal se feriu no transporte!”, responde um agente, bem tranquilo…
Tranquilo nada!
No dia seguinte cedo, chega a bióloga da tal ONG legal e constata o seguinte o quadro: lacerações múltiplas no ventre feitas por cães e animal em extremo sofrimento, com aquele olhar grande e intenso que só os cervídeos têm!
Aí entra em cena, outro personagem: a clínica veterinária parceira, também muito legal, pois realiza o atendimento pro bono. Bióloga se desloca até a clínica para combinar a entrada do animal, pois o serviço veterinário é para gatos e cães, e, portanto, é preciso acertar os detalhes com antecedências, ainda mais em pleno feriado. Bióloga volta rapidamente a sede da ONG legal, troca de veículo, um que caiba a caixa de transporte adequada ao animal, coloca cervo na caixa e volta à clínica.
Novamente, por ser feriado, bióloga não consegue estacionar exatamente na porta da clínica e tem que deslocar a caixa com o animal, conjunto com cerca de 20 quilos, por uma escada estreita. Haja força e muita calma nessa hora! O animal chega quase em óbito, mas a dedicação da equipe veterinária e a qualidade do atendimento com infusão de oxigênio e medicação de suporte fazem com que ele fique estável e comece o trabalho de sutura das lacerações.
Aí temos a segunda constatação: além do ventre, o cervo havia sido atacado também no pescoço com extensa destruição do sistema vascular na área. Típico de ataque por cães, o pescoço e as partes moles do animal. Bióloga volta à sede da ONG, troca de carro novamente e volta à clínica para acompanhar o atendimento. Imaginando encontrar o animal já em óbito, o caminho de volta até a veterinária é feito em silêncio.
Chegando novamente na clínica, surpresa: o cervo está vivo! Ainda em estado crítico, é novamente transportado, desta vez até a casa da bióloga, pois seria necessário administrar soro e medicação de suporte durante a madrugada, uma vez que a clínica estaria fechada no dia seguinte, por ser feriado. E tudo isso, além da tensão e da angústia, com o valor do combustível quase proibitivo. Mas é uma ONG legal, não é mesmo?
A bióloga acomoda animal com aquecimento e em local próximo ao quarto, pois será necessário levantar-se várias vezes. Animal vem a óbito por volta das três da manhã. Era uma fêmea juvenil de veado-catingueiro (Mazama gouazoubira).
A pergunta que fica é: qual é o tamanho da população da espécie na região, uma das poucas no Estado que ainda possuem alguma área de floresta primária? Esta espécie, que é vítima de atropelamentos e ataque de cães, vive em pequenos grupos de dois a três animais. No monitoramento que fazemos por câmeras trap, às vezes encontramos uma fêmea com o filhote, um macho sozinho ou, com uma sorte incrível, uma família completa om três indivíduos. Eles são animais tímidos com hábitos discretos, mas a contínua degradação ambiental faz com que sejam cada vez mais frequentes os encontros deste tipo de fauna com os humanos e seus cães domésticos.
O veado-catingueiro não tem filhotes todo o ano, sobretudo em ambiente degradado onde os animais têm dificuldade de encontrar parceiros para acasalamento. Os filhotes ficam até quase dois anos com a mãe. No nosso caso, a fêmea juvenil tinha aproximadamente um ano, era ainda indefesa e precisava do auxílio da mãe.
Os cervídeos são um grupo de animais da nossa mastofauna que se caracterizam pela elegância dos membros e da delicadeza. São verdadeiras joias da nossa Mata Atlântica. Termino meu artigo querendo acreditar que eles continuarão existindo, mas assistindo dia a dia o declínio da população desses animais tão especiais da nossa fauna silvestre.
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