
Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
universocetras@faunanews.com.br
Neste texto, apresento a narrativa de uma situação muito comum a centros de triagem e de reabilitação de animais silvestres (Cetras) do Brasil. Os nomes são fictícios, mas s situação é real.
…Xô, cotovia
Xô, ave-fria
Xô, pescador-martim
Some, rolinha
Anda, andorinha
Te esconde, bem-te-vi
Voa, bicudo
Voa, sanhaço
Vai, juriti
Bico calado
Muito cuidado
Que o homem vem aí…
(Fragmento da canção “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime)
“Aconteceu o que ninguém esperava. Primeiro porque o Cacuco botou um ovo, chocou e dele saiu um filhote. Estão era fêmea!?. Surpresa! Depois porque foi realmente uma outra surpresa Cacuco (ou poderia ser Cacuca?) ter encontrado um parceiro e ter criado uma família, com aquele belo filhote. Só poderia ter escolhido um ninho mais adequado! Pelo menos ele não mudou seu jeito estabanado ao escolher criar em um fogão de lenha desativado”
Essa foi a constatação de Maria, a proprietária de uma fazenda registrada como uma das Áreas de Soltura de Animais Silvestres da região.
Atenta a tudo que esteja ao alcance de sua visão, mesmo não sendo bióloga formada, dona Maria sempre fez tudo que pode para acompanhar todos os animais que são trazidos pelo Ibama e soltos na sua propriedade. Não poderia ser diferente com aquele periquitão-maracanã tão especial.
Uma chance à liberdade…
Ele era igual a muitos que têm esse destino. Cacuco nasceu em uma casa humana, em um forro pouco iluminado e bem desconfortável.
De alguma maneira, do sair do ovo e sair do ninho, não foi a época mais agradável de sua vida. Era apertado o local de seu ninho. Os cantos não utilizados de uma casa humana. Contudo, logo após seu nascimento, também nascia a sua proximidade com os seres humanos.
A dona da casa, talvez porque não quisesse mais o barulho, a sujeira e o incômodo daquele ninho de periquitos em seu forro, talvez porque quisesse aquele único filhote sobrevivente pra si, retirou Cacuco do ninho e passou a alimentá-lo dentro de uma gaiola e a mantê-lo em casa junto dos seus cães, gatos, plantas e de todas as pessoas.
Desde muito cedo, Cacuco sofreu com as dificuldades do ninho, depois pelas dificuldades do seu cativeiro. Tinha vontades não satisfeitas. Vontade de voar. Vontade de interagir com outros. Dessa forma, foi suprindo suas vontades com aquilo que era oferecido ou que estava disponível. Se quisesse interação com outros, fazia isso com os cães da casa, com sua “dona”, marido e filhos. Da sua forma de perceber o mundo, esse se resumiu àquelas pessoas; àquela gaiola. Contudo, a vontade de voar, que ara muito forte, ficou reprimida causando uma vontade estranha em Cacuco de puxar suas penas com o bico. Isso fez dele um dos periquitos mais feios que se tinha ao alcance dos olhos. Ao invés de uma vasta cobertura de penas verdes, que é típica dos periquitões-maracanã, da espécie Psittacara leucophthalmus, tinha grandes falhas de cor cinza de penas faltando em seu corpo.
Dessa forma, sua “dona”, que tinha essa estranha mania de tomar decisões com base em motivações múltiplas e contraditórias, meio porque estava com pena de Cacuco meio porque tinha vergonha de ter em sua casa aquele periquito estranho e barulhento, ou talvez pelo medo de ser denunciada e receber uma fiscalização do Ibama em sua residência, toma a decisão de se desfazer dele. Descobriu que o Ibama podia receber animais por entrega voluntária.

Foi por essa motivação que a “dona” do Cacuco fez sua entrega no Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama de São Paulo. Contudo, ele ainda não tinha recebido esse nome. Era uma ave parecida com muitas que o Cetas recebia. Era mais uma de muitas, mesmo assim, recebeu todo o cuidado. Primeiro ficou isolado para que pudesse ter seu comportamento e saúde avaliados separadamente dos outros. Depois, foi colocado com outros da mesma espécie para que pudesse reaprender a ser novamente periquito, ou seja, uma ave silvestre, portadora de muitas motivações extintivas, como viver em bandos e explorar grandes áreas a procura de alimento, por exemplo.
Durante o período que esteve no Cetas, Cacuco melhorou muito de sua condição. Estava bem fisicamente, contudo ainda demonstrava o comportamento de buscar o contato humano, o que é muito diferente do normal para uma ave silvestre de vida livre. Infelizmente, é um comportamento muito comum para uma ave com o seu histórico.
Cacuco (que ainda não era Cacuco no Cetas) passa a compor um grupo muito específico de animais cuidados pelos centros de triagem: os que se recuperam, mas que ainda não sabem expressar, no cativeiro provisório, o seu comportamento selvagem ou, mais simplesmente falando, ainda não mostrava claramente que sabia o que era ser um periquito.
Mas o que fazer com o Cacuco? Que destino pode ter uma ave dessa? Essa é a dúvida mais comum expressada em um centro de triagem de animais silvestres. O corpo era, sem dúvida, capaz, mas como suas motivações ainda não produziam comportamentos que aflorassem naquilo que todos imaginam ser de uma ave livre, que voa, explora o ambiente, cumpre o seu papel como animal selvagem, que destinação poderia ter esse animal?
As opções eram manter Cacuco eternamente em cativeiro, sendo encaminhado para um criadouro, zoológico ou outro empreendimento. A outra opção seria dar uma chance a ele, a chance da liberdade, o que costumeiramente se nomeia em um Cetas.
Mas a segunda opção, ao contrário da primeira, traz riscos e muitas dificuldades. Riscos principalmente para Cacuco, porque motivação ao contato humano é reconhecidamente situação de muito risco a uma ave silvestre. O mínimo que ela pode perder (novamente) é a liberdade.
Contudo, diante da certeza confortável do cativeiro e a dúvida causada pela opção da liberdade, optou-se pela esta.
Vale ressaltar, também, que a decisão, mesmo difícil, foi muito facilitada pela presença de pessoas parceiras que oferecem suas propriedades para serem cadastradas como Áreas de Soltura de Animais Silvestres. Esses são locais que apresentam condições naturais adequadas para a retomada da vida livre dos animais, mas que possam oferecer uma proteção maior para estes indivíduos com dificuldade de reintegração.
Foi o caso da área de soltura da propriedade da dona Maria, uma grande fazenda produtiva e com muitos fragmentos de mata, grande variação de paisagens e um bom viveiro de aclimatação para animais na condição dele.
Com esse apoio, Cacuco ganhou a nova chance de liberdade e também ganhou seu nome.
O lote de periquitos que ele integrava chegou do Cetas e passou duas semanas no viveiro de aclimatação. Depois desse prazo, o viveiro foi aberto e todas as aves puderam se reintegrar à natureza. Inclusive aquele periquito que, logo quando saiu, passou a rondar a casa de dona Maria, procurando alimento e, principalmente, contato humano. Logo, dona Maria percebeu uma característica interessante. Sua vocalização um tanto diferente soava exatamente como o nome que ela deu aquele periquito: ca-cu-co.
Agora já nomeado, procurava a casa e as pessoas. Comia o alimento que era oferecido na área de soltura como suplementação, mas também procurava o alimento natural, frutos e semente em abundância da propriedade.
Dona Maria sempre atualizava os funcionários do Ibama das notícias. Contudo, nem precisava. Quando eles voltavam para visitar a propriedade e com um lote novo para a soltura, Cacuco sempre aparecia voando muito bem e ficava bem próximo para eles, com a suas penas se recuperando e sua vocalização diferente.

Passaram-se quatro anos e a chance dada ao Cacuco foi anunciada como bem-sucedida, com a notícia de que o único erro cometido foi a definição do sexo. Não, não era um macho. Mas sim, poderia ser livre de novo e cumprir seu papel ecológico.
Cacuco continua na propriedade de dona Maria, que nunca se sentiu dona dele.
Segue vivo, em liberdade, comendo frutos, criando filhotes. Esses seguem selvagens, não humanizados e voando livres, sem nunca terem sido aprisionados.
Essa é a história de Cacuco. Que estava morto sob o ponto de vista ambiental e ressuscitou.
Hoje, temos certeza que, a seu modo, ele agora sabe o que é ser um periquito.
– Leia outros artigos da coluna UNIVERSO CETRAS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)