
Por Érika Pelegrino
Bichos e Gente
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A Caatinga é o único bioma de distribuição exclusivamente brasileira. Abriga mais de 800 espécies de bichos, mais de 1.000 espécies vegetais. Grande parte deste patrimônio biológico não é encontrada no restante do mundo. No entanto, não recebe a atenção necessária dos governos federal, estaduais e municipais para sua conservação. Com mais de 800.000 km, 46% de suas áreas encontram-se degradadas.
O estudo Prioridades de restauração para florestas secas da Caatinga: resiliência da paisagem, conectividade e valor da biodiversidade – publicado em 3 de março na revista Journal of Applied Ecology – traz um mapeamento das áreas prioritárias de restauração da Caatinga, com dados para coibir o desmatamento e outras ações humanas que degradam este bioma e promovem a perda de biodiversidade. A pesquisa foi desenvolvida por cientistas das universidades federais do Rio Grande do Norte (UFRN) e do ABC (UFABC) e da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o World Resources Institute (WRI).
O mapeamento contribui com o propósito da Década da Restauração dos Ecossistemas, 2021-2030, decretada pela Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é um esforço mundial para prevenir, deter e reverter a degradação dos ecossistemas de todo o mundo. Neste sentido, o coautor da pesquisa, Carlos Roberto Fonseca, pesquisador do Departamento de Ecologia da UFRN, afirma que o mapeamento está disponível para ser utilizado por iniciativas privadas e por governos federal e estaduais para o desenvolvimento de ações de restauração.
Pesquisa
O mapa permite ver as áreas com maior potencial para evitar a extinção de 350 espécies de plantas que não existem em nenhum outro lugar do mundo, se forem restauradas. Para elaborá-lo, os pesquisadores dividiram a Caatinga em mais de 10 mil microrregiões, definidas por bacias de captação de chuva, e as classificaram em grau de prioridade para restauração.
Cerca de 10% foram classificadas como de alta prioridade para restauração, por possuírem mais de 10 espécies ameaçadas, além de serem áreas importantes para a movimentação das espécies pela Caatinga. Outras 86 foram classificadas como de prioridade máxima para restauração, entre elas uma área na Chapada Diamantina, na Bahia, onde 106 espécies estão ameaçadas de extinção.
O nosso trabalho mostra que existem grandes oportunidades de restauração em todos os estados da Caatinga. No entanto, se eu tivesse dinheiro para restaurar apenas um local, com certeza investiria nesta área prioritária na Chapada Diamantina. Ou agimos hoje, ou arriscamos perder toda esta biodiversidade da noite para o dia, afirma Carlos Fonseca.

O coautor do estudo, pesquisador Carlos Roberto Fonseca conversou com o Bichos e Gente.
Bichos e Gente – Qual o método utilizado para determinação das áreas prioritárias de restauração da Caatinga?
Carlos Roberto Fonseca – O nosso estudo usa uma série de ferramentas de análises espaciais que integram informações sobre a distribuição geográfica das espécies, desmatamento e o nível de conectividade da paisagem, ou seja, a facilidade com que estas espécies teriam para se movimentar dentro e entre microrregiões da Caatinga. Atualmente sabe-se que esta movimentação é fundamental para que as espécies enfrentem as mudanças climáticas que já estão sendo sentidas no Brasil e no mundo.
Bichos e Gente – Qual o grau de desmatamento dentro de cada bacia?
Carlos Roberto Fonseca – Cerca de metade da Caatinga já foi perdida por desmatamento, mas o grau varia muito entre bacias. Das aproximadamente 10 mil bacias da Caatinga, um quarto ainda retêm mais de 80% de sua cobertura vegetal e possuem uma boa conectividade. Para estas bacias, não vale tanto a pena investir em restauração, pois as espécies que vivem lá devem estar relativamente bem. Em compensação, um quarto das bacias possuem de zero a 20% de cobertura vegetal e a conectividade é extremamente baixa. Infelizmente, para restaurar estas áreas o investimento é praticamente proibitivo. As áreas que têm um nível intermediário de cobertura e conectividade são mais promissoras em termos de restauração. Ações de restauração nestas áreas podem ajudar muito a biodiversidade.
Bichos e Gente – Além do desmatamento, quais ações humanas contribuem para a degradação da Caatinga?
Carlos Roberto Fonseca – A Caatinga tem sido utilizada há muitos séculos pela população local e o impacto cumulativo deste uso, muitas vezes não sustentável, está se fazendo sentir. Nas últimas décadas construímos muitas estradas, extraímos muita madeira, criamos muito gado, caçamos a fauna e abusamos do uso do fogo. Todos estes processos antrópicos têm levado o sistema ao seu limite. Muitas áreas da Caatinga estão em pleno processo de desertificação. Na realidade, em um trabalho recente demonstramos que a maioria dos 42 mil fragmentos de Caatinga que restam já se encontra altamente alterada pelo homem. A restauração é essencial para retomarmos a rédea de um desenvolvimento mais sustentável.
Bichos e Gente – Qual a importância destas bacias para conectividade de todo o bioma?
Carlos Roberto Fonseca – As previsões das mudanças globais indicam que os padrões geográficos de temperatura e de chuva vão mudar na Caatinga. Áreas que chovem mais podem começar a secar. Áreas com clima mais ameno podem se tornar mais quentes. Para se adequar a estas mudanças climáticas muitas plantas e muitos bichos vão ter que mudar de endereço à procura de locais mais adequados as suas necessidades fisiológicas. E para conseguirem se deslocar de um canto para outro, a paisagem tem que ter um certo grau de conectividade. As manchas remanescentes de vegetação não podem estar muito afastadas, senão os bichos não conseguem atravessar de uma para outra. Como as nossas áreas prioritárias têm como um dos critérios fundamentais o aumento da conectividade da paisagem, todas as plantas e bichos da região restaurada serão beneficiados também.
Bichos e Gente – Qual o impacto para os bichos distribuídos na Caatinga?
Carlos Roberto Fonseca – A restauração das áreas prioritárias pode ajudar muitos bichos distintos, especialmente as espécies que têm menor capacidade de deslocamento, como pequenas aves, pequenos mamíferos, sapos e insetos. Um grupo de organismos que merece atenção em trabalhos futuros é o de peixes. A restauração de determinadas bacias pode beneficiar muito a sobrevivência das 371 espécies de peixes que ocorrem no bioma, principalmente as 203 espécies que ocorrem quase que exclusivamente na Caatinga.
Bichos e Gente – De que forma as ações de restauração podem contribuir com a justiça social?
Carlos Roberto Fonseca – Para alcançarmos uma certa escala na restauração da Caatinga precisamos organizar uma cadeia produtiva verde que inclui os coletores de sementes, os produtores de mudas, os plantadores, os vendedores de insumos e maquinários, os coletores e processadores dos produtos da Caatinga, dentre outros. Imaginamos que muitas destas atividades podem ser desenvolvidas por comunidades ou cooperativas organizadas em rede. Todas estas atividades têm um grande potencial de gerar oportunidades de empregos diretos e indiretos, além dos recursos e serviços da Caatinga que irão beneficiar as populações locais.