Biólogos com bicho na mão, reforço de estereótipos e desvalorização da profissão

Eu poderia ter usado uma foto do Steve Irwin ou até mesmo do Sérgio Rangel. Escolher uma imagem de algum deles (com bichos na mão) para ilustrar este texto é mais uma estratégia de marketing do que qualquer outra coisa. Este texto não é sobre nenhum dos três. Não exatamente. Este texto é sobre reforço de estereótipos, “educação ambiental” e desvalorização de uma profissão – a dos biólogos.

Duas décadas e quatro anos dentro do século 2000, crianças com aspiração ao estudo da natureza que assistiam aos quadros semanais de Mundo Selvagem na televisão cresceram, já têm diploma e, com sorte, experiência de atuação na área de Ciências Biológicas. Mas, para além dos que seguiram (ou não) na profissão, somos hoje uma geração inteira de pessoas sugestionadas à ideia de que biólogos bem sucedidos são aqueles que trabalham diretamente com animais. Encontrando, imobilizando e carregando-os “com segurança” por aí: para frente das câmeras, para programas de auditório, dentro e fora de zoológicos, em qualquer lugar.

É inegável que a associação da profissão de biólogo ao trabalho com animais está consumada no imagético popular brasileiro e enraizada na nossa cultura geracional.

No subconsciente, registrou-se esse “faz-de-conta” de que biólogos “de verdade“ têm com os animais uma espécie de relação íntima e secreta que ninguém mais entende ou pode ter; somente os biólogos. Como se tais profissionais fossem uma espécie de “mantenedor de fauna ambulante”, um “carregador de souvenir de natureza” ou um “poleiro humano” onde toda e qualquer ave se sente à vontade para pousar. Quando, na verdade, contenção de fauna nem é uma matéria presente na maioria das nossas grades curriculares. E para a surpresa de muitos, nem todo biólogo, ao entrar na faculdade, pretende trabalhar com animais.

Para além das telinhas (grandes ou pequenas), esse mito sobre um suposto “dom especial” que os biólogos teriam de “pegar em bichos” sempre foi – e ainda é – constantemente materializado e reforçado durante atividades de “educação ambiental” em diversos lugares ao redor do país. E aqui eu uso aspas porque meu objetivo é justamente questionar os ensinamentos dados num contexto em que o profissional (e “seus animais extraordinários”) entra e sai de uma sala de aula ou auditório como uma “atração”; como um “show de curiosidades”; como um entretenimento, como um “alívio de férias” no final de semana ou entre as aulas das disciplinas “sérias e chatas” (e por isso mais importantes) como matemática.

A natureza é mesmo digna de “uaus!” e muita admiração, mas é preciso lembrar o básico: temos mais de um sentido. O aprendizado através da experiência sensorial é importante, mas vai além do toque. É possível ensinar biologia com uma conversa, com música, com um casulo vazio, a partir de pegadas no chão ou apontando como algo que inicialmente pode ser visto como banal, como o enfileirar das formigas pelo chão, pode guardar grandes mistérios e descobertas. As crianças que se impressionam com o macaco do zoológico sabem que os insetos que aparecem em seus jardins dividem tarefas e tem sociedades complexas?

Eu acredito que o futuro da educação ambiental seja a evolução (ou retorno) para uma contemplação passiva. O crescimento na frequência de interesse por atividades como o birdwatching (observação de aves) no Brasil e no mundo talvez seja, ao mesmo tempo, um sinal e um exemplo que prova isso.

Exibicionismo: forma fácil e preguiçosa de ensinar sobre natureza

Apresentar animais – independentemente da origem – que foram capturados e contidos para uma atividade, em minha opinião, é apenas uma das formas mais fáceis e preguiçosas e, por isso, menos efetivas de formar cidadãos mais politizados ambientalmente. Às vezes, eu até me pergunto se tais atividades atrapalham mais do que ajudam: qual é mesmo o benefício de ensinar pessoas a não terem medo de pegar em jiboias? Por que aquela guia está andando pelo zoológico com uma coruja-suindara (Tyto furcata) à luz do dia?

Eu arrisco dizer que é de todo esse ciclo de superficialidade que vem a desvalorização da profissão de biólogo no Brasil – que ainda não tem piso salarial definido por lei. Se muitas pessoas acreditam que pegar em bicho é o que biólogo faz, muitas pessoas acreditam que biólogo só faz pegar em bicho. Mas, ao passo em que não há uma disciplina de “contenção de animais” na grade curricular do curso, há: Anatomia Humana, Biotecnologia, Microbiologia, Imunologia, Bioquímica, Histologia, Botânica, Paleontologia, Fisiologia Vegetal, Filosofia da Ciência, Hidrologia, Bioclimatologia, Genética, Ecologia… e a lista continua.

Ou seja, Zoologia é apenas uma vertente da Biologia, nem mais nem menos importante. É claro que tem biólogo trabalhando com bicho, mas também tem biólogo trabalhando no desenvolvimento de vacinas, na identificação de fósseis de dinossauros encontrados em solo brasileiro, na experimentação de substâncias de plantas para tratamentos contra a reprodução de células cancerígenas… e eu não poderia esquecer: tem biólogo dando aula de Ciências no ensino fundamental e tem biólogo fazendo divulgação científica de qualidade em tempos de fake news e negativismo científico na internet, como a Natalia Pasternak e o Átila Iamarino. E eu nunca vi nenhum dos dois com animais na mão. Você já?

Eu gostaria de fechar este artigo com duas perguntas. A primeira para todos e a segunda especificamente para os meus colegas de profissão:

• Quem ou o quê vem a sua cabeça quando você pensa em profissional da biologia?
• Qual a nossa responsabilidade em relação à resposta da primeira pergunta?

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