Bauruemys elegans, a tartaruga extinta mais conhecida do Brasil

Meu primeiro texto da coluna foi sobre um afloramento cheio de fósseis de tartarugas, em Presidente Prudente (SP). Desta vez, vou escrever sobre uma das espécies encontradas nesse lugar. Ela se chama Bauruemys elegans e seus fósseis foram localizados nessa região do oeste de São Paulo, na cidade de Pirapozinho, dentro de uma bacia sedimentar conhecida como bacia Bauru – nesse caso, a palavra “bacia” se refere à bacia sedimentar e não à bacia hidrológica.

A bacia Bauru é enorme, ocupando uma área que cruza cinco Estados (SP, MG, MS, GO e PR) e seus sedimentos foram depositados ao longo do período Cretáceo. Por essa razão, há diferentes níveis geológicos – ou camadas de rochas, chamadas de “formação” – que podem ser distinguidos por terem se depositado em diferentes tempos e contextos ambientais.

As rochas cujos fósseis de Bauruemys elegans foram encontrados datam de aproximadamente 86 milhões de anos, do Cretáceo Superior, uma idade chamada de Coniaciano, atualmente considerada como formação Adamantina. Análises das rochas mostraram que o ambiente era regido por um clima sazonal, com épocas de secas e cheias, que levavam a inundações de grandes áreas, tal como acontece com o Pantanal. Além de tartarugas, fósseis de crocodilos, invertebrados aquáticos e de dinossauros já foram encontrados nas mesmas rochas, mostrando um ambiente rico em diversidade naquela época. No entanto, fósseis parciais dessa espécie já foram encontrados e descritos para outras localidades onde a bacia Bauru encontra-se exposta, indicando que ela tinha uma geografia bastante ampla no final do Cretáceo.

Junto com a Bauruemys elegans, sete outras espécies de tartarugas já foram encontradas em localidades diferentes da mesma bacia sedimentar e descritas. Todas pertencem ao grande grupo conhecido como Pleurodira, que são as tartarugas que conseguem retrair o pescoço e a cabeça para o lado – atualmente, é composto somente por espécies de água doce popularmente chamadas de cágados. Como comparação, também existem tartarugas que retraem o pescoço e a cabeça para trás, por entre os membros anteriores, como fazem os jabutis e, por esse motivo, pertencem ao grupo chamado Cryptodira.

Afloramento de Tartaruguito

A Bauruemys elegans é a única espécie da bacia que é reconhecida tanto pelo crânio quanto pelo casco. As demais podem ser distinguidas somente por uma dessas partes – ou crânio ou casco. Isso acontece porque, frequentemente, os esqueletos dos fósseis são encontrados incompletos, pois algumas partes costumam se desarticular pela ação de animais carniceiros e seres decompositores após a morte do animal e/ou serem destruídas com a fossilização. Por causa disso, e por ser encontrada em abundância no afloramento de Pirapozinho – o que deu o nome ao afloramento de Tartaruguito –, essa espécie é a mais conhecida e estudada dentre as tartarugas fósseis encontradas em nosso país.

O casco das tartarugas é formado pela carapaça, na parte de cima ou nas “costas”, e pelo plastrão, na parte de baixo ou na “barriga”. Cada uma delas é composta por ossos que se dispõem seguidos um dos outros, tanto de frente para trás quanto do meio para os lados. A carapaça é formada por séries ósseas denominadas marginais – os mais externos, que ficam na borda –, os neurais – os do meio, dividindo a carapaça entre os lados direito e esquerdo – e os costais, que ficam entre os marginais e os neurais.

A disposição, a quantidade e a anatomia desses ossos podem ser úteis para se definir uma espécie. Uma característica que pode ser prontamente analisada para se distinguir a Bauruemys elegans das outras espécies é a presença de um osso da carapaça chamado neural II, que possui quatro lados, ou tem formato quadrangular, nessa espécie. Esse mesmo osso existe em outras espécies (aquelas com a carapaça conhecida), mas, geralmente, tem um formato com seis lados.

Todas as espécies da bacia Bauru pertencem ao grupo Pleurodira, mas algumas não têm seu posicionamento filogenético bem entendido porque partes corporais importantes para se comparar espécies não foram preservadas ou encontradas ainda. Felizmente, esse não é o caso da Bauruemys elegans. Ela é uma espécie que é mais aparentada a espécies amazônicas, como a tartaruga-gigante-da-amazônia (Podocnemis expansa) e o cabeçudo (Peltocephalus dumerilianus) e da espécie Erymnochelys madagascariensis, que existe somente em Madagascar, uma ilha próxima à costa sudeste da África. A sua posição na árvore filogenética também é importante porque está no começo da evolução de uma linhagem evolutiva (não vou me ater a nomes complicados aqui; essa linhagem é a que deu origem aos gêneros mencionados acima) e é uma espécie com várias partes corporais conhecidas, apesar de o crânio e o casco terem sido muito mais estudados. Por esse motivo, é possível preencher um pedacinho da história evolutiva dessa linhagem, pedacinho esse que representa um estágio entre o começo da linhagem e o momento atual (representado pelas espécies viventes).

Permitam-me abrir um parêntese neste momento para dizer que o registro fóssil de tartarugas no Brasil é bastante importante para se estudar muitas linhagens de tartarugas pleurodiras, porque os fósseis encontrados são relativamente abundantes e estão em rochas do Cretáceo, tanto o Inferior (como da bacia do Araripe) quanto o Superior (como da bacia Bauru). Alguns desses fósseis estão em posições evolutivas/filogenéticas chaves para se entender a evolução dessas linhagens e trazem muita relevância paleontológica para o país. Voltando…

Como dito, o afloramento do Tartaruguito é bastante abundante em fósseis de tartarugas e, particularmente, da Bauruemys elegans. No entanto, toda essa quantidade é de animais de tamanhos médios e grandes. Pouquíssimos fósseis são de ovos e nenhum espécime filhote ou muito juvenil foram encontrados. Isso levantou a hipótese de que a região não fosse uma área para desova, pois esperar-se-ia maior frequência de ninhos ou ovos fossilizados; mas uma área para alimentação. Além disso, devido à grande quantidade de fósseis, levantou-se a hipótese de que os espécimes pertencessem a uma mesma população – seguindo a definição de uma sequência de animais de diferentes gerações, isto é, conectados temporalmente, que vivem em um espaço restrito.

Essa hipótese foi testada e corroborada por dois estudos que analisaram a variação morfológica do casco e do crânio de vários fósseis coletados no afloramento, indicando que as variações encontradas não são grandes o suficiente para indicar uma hipótese alternativa (= a de que há mais de uma população).

Diante de uma área com fósseis de idades restritas (sub-adultos e adultos), surgiram as perguntas sobre se haveria mudanças no tamanho dos ossos cranianos, qual a magnitude dessas mudanças entre animais de diferentes tamanhos – diferenças que chamamos de ontogenéticas – e em quais ossos as mudanças aconteceriam com maior intensidade. Mudanças em alguns ossos foram encontradas e foram mais intensas nos que ficam em regiões do crânio, onde os músculos que abrem e fecham a boca se ancoram. Como o afloramento foi considerado uma região onde os animais provavelmente buscavam por alimento, essa foi a associação mais direta que poderia explicar a variação no crescimento dos ossos – animais de tamanhos diferentes comeriam alimentos de tamanho e dureza diferentes. E há registros de peixes e moluscos fósseis no afloramento, que poderiam ter servido de alimento para essas tartarugas.

Com tantos fósseis encontrados em um só local, é esperado que a maior parte dos estudos se concentrem neles. E isso acabou acontecendo sobre uma só espécie também. Apesar disso, outras espécies também são conhecidas e foram encontradas em locais distantes do Tartaruguito, em rochas formadas em um ambiente parecido, mostrando que as tartarugas de água doce eram bem distribuídas e diversas já nessa época.

Ao se estudar uma espécie com uma amostra grande, é possível fundamentar uma base morfológica, biológica e científica coerente, que pode servir para inferências sobre outras espécies fósseis, como sugerir hábitos alimentares. E ao se comparar com as espécies que vivem hoje em dia, é possível compreender processos evolutivos de forma mais robusta.

Referências

• Bogado JP, Pereira PVLGC, de la Fuente MS, Bergqvist LP. 2023. New records of Testudines from the Presidente Prudente Formation of the Bauru Group (Late Cretaceous), with a revised diagnosis for Roxochelys wanderleyi and palaeoichnological remarks. Journal of South American Earth Sciences 128:104478
• Ferreira GS, Bronzati M, Langer MC, Sterli J. 2018. Phylogeny, biogeography and diversification patterns of side-necked turtles (Testudines: Pleurodira). R. Soc. open sci. 5:171773.
• Gaffney ES, Meylan PA, Wood RC, Simons E, Campos DA. 2011. Evolution of the side-necked turtles: the family Podcnemididae. Bulletin of the American Museum of Natural History 350:237
• Henriques DDR, Azevedo SAK, Capilla R, Suárez JM. 2005. The pirapozinho site—a taphofacies study. Journal of Vertebrate Paleontology 25:69A
• Henriques DDR, Suárez JM, Azevedo SAK, Capilla R, Carvalho LB. 2002. A brief note on the paleofauna of “Tartaruguito” site, Adamantina Formation, Bauru Group, Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências 74(2):366
• Mariani TF, Romano PSR. 2017. Intra-specific variation and allometry of the skull of Late Cretaceous side-necked turtle Bauruemys elegans (Pleurodira, Podocnemididae) and how to deal with morphometric data in fossil vertebrates. PeerJ 5:e2890
• Piacentini Pinheiro AE, Pereira PVLGdC, de Souza RG, Brum AS, Lopes RT, Machado AS, Bergqvist LP, Simbras FM. 2018. Reassessment of the enigmatic crocodyliform “Goniopholis” paulistanus Roxo, 1936: Historical approach, systematic, and description by new materials. PLoS ONE 13(8): e0199984
• Romano PSR, Azevedo SAK. 2006. Are extant podocnemidid turtles relicts of a widespread Cretaceous ancestor? South American Journal of Herpetology 1(3):175-184
• Romano PSR, Azevedo SAK. 2007. Morphometric analysis of the Upper Cretaceous brazilian side-necked turtle Bauruemys elegans (Suárez, 1969) (Pleurodira, Podocnemididae) Arquivos do Museu Nacional 65(4):395-402
• Romano PSR, Oliveira GR, Azevedo SAK, Kellner AWA, Campos DA. 2013. New information about Pelomedusoides (Testudines: pleurodira) from the Cretaceous of Brazil. In: Brinkman, D.B., Holroyd, P.A., Gardner, J.D. (Eds.)

Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)