Por Kamila Bandeira
Bióloga com mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutoranda no mesmo programa, além de pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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A evolução dos mamíferos passou por muitos estágios desde a primeira aparição de seus ancestrais mais antigos. Em meados do Triássico (cerca de 230 milhões de anos atrás), enquanto dinossauros estavam ensaiando dominar a Terra, pequenos animais com dentição diferenciada se entocavam nas sombras. Eles pertenciam a uma grande linhagem evolutiva chamada de Synapsida (ou sinapsídeos, no bom português), e, especificamente dentro desse grupo, há um subgrupo chamado Cynodontia, onde estão os cinodontes.
Os cinodontes foram amplamente diversos durante o Triássico e apresentavam uma grande variedade de estilos de vida, incluindo carnivoria e herbivoria. É desse ramo que surgiram os mamíferos mais primitivos. Entretanto, acreditava-se que esse “mamífero progenitor” teria surgido alguns milhões de anos depois, no período Jurássico (há cerca de 205 milhões de anos), ainda que haja debate na comunidade científica.
Isso se deve pois não há fósseis que apresentem vestígios de glândulas mamárias e quase sempre os pelos não se preservam. Portanto, os paleontólogos precisam observar outras estruturas que sejam mais resistentes, tais como dentes e ossos mineralizados que se fossilizam mais facilmente. Ainda, os mamíferos apresentam exclusivamente um único conjunto de dentes de reposição, um processo conhecido como difiodontia. O primeiro conjunto de dentes começa a se desenvolver durante o estágio embrionário (que dá origem aos nossos dentes de leite), e um segundo e último conjunto de dentes se desenvolve quando o animal nasce (enquanto eles se desenvolvem, “empurram” os dentes de leite conforme crescemos). Já nos demais vertebrados que apresentam dentes, a substituição dentária acontece muitas vezes ao longo da vida do animal (o que é chamado de polifiodontia).
Além disso, a presença da difiodontia também envolve mudanças profundas na anatomia do crânio. É o caso do fechamento do palato secundário (o céu da boca), pois o palato secundário fechado é o que permite que o jovem mame, enquanto respira ao mesmo tempo. Por isso, quando há evidências da presença de difiodontia em alguma espécie fóssil, ele logo vira um candidato forte a ser nosso mais antigo antepassado.
O primeiro mamífero
Uma nova pesquisa indica que essa característica-chave para entender a evolução dos mamíferos surgiu muito antes do que se pensava. O estudo, publicado na revista científica Journal of Anatomy, liderada por paleontólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com pesquisadores do King’s College London e do Museu de História Natural de Londres, examinou os maxilares inferiores em fósseis de um pequeno cinodonte brasileiro chamado Brasilodon quadrangularis.
O Brasilodon foi um animal com pouco mais de 20 centímetros de comprimento e que viveu há 225 milhões de anos no Rio Grande do Sul, em rochas da formação Santa Maria (que já apareceu aqui na coluna, em maio e em novembro do ano passado).
A pesquisa se baseou em observações morfológicas das mandíbulas e na análise de lâminas histológicas dos dentes de quatro indivíduos de Brasilodon, que apresentavam diferentes tamanhos. Portanto, indicava que estavam em etapas de crescimento distintas e assim foi possível determinar como se dava o desenvolvimento da dentição daquele animal ao longo do crescimento e envelhecimento da espécie.
As lâminas histológicas foram analisadas em diferentes microscópios e elas são importantes devido ao esmalte e a dentina (encontrada no interior dos dentes) conseguirem preservar melhor as informações das condições metabólicas em que são formadas. Assim, foi possível delimitar quais dentes teriam iniciado sua formação durante a fase embrionária e quais os dentes teriam se formado após o nascimento. Finalmente, não há dúvidas de que o Brasilodon é o vertebrado extinto mais antigo a apresentar a difiodontia, o que sugerie uma origem muito anterior dos mamíferos em 20 milhões de anos do que se pensava.
Para saber mais
– Cabreira, S.F., Schultz, C.L., da Silva, L.R., Lora, L.H.P., Pakulski, C. & do Rêgo, R.C.B. et al. (2022) Diphyodont tooth replacement of Brasilodon—A Late Triassic eucynodont that challenges the time of origin of mammals. Journal of Anatomy: 1–17. https://doi.org/10.1111/joa.13756
– Paleontólogos brasileiros e britânicos identificam o mais antigo mamífero da Terra (UFRGS)
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