O período Paleógeno é uma subdivisão do tempo geológico que engloba a história do planeta Terra desde o limite Cretáceo-Paleógeno, ocorrido há 66 milhões de anos, até o limite Oligoceno-Mioceno, ocorrido há aproximadamente 23 milhões de anos. O limite Cretáceo-Paleógeno, ponto de partida do Paleógeno, coincidiu com um grande evento de extinção que levou ao desaparecimento de vários grupos de seres vivos, como os dinossauros não-avianos, os grandes répteis marinhos e os moluscos amonoides. Os milhões de anos seguintes à extinção foram marcados pela recuperação da biodiversidade global, incluindo a diversificação dos grupos de animais vertebrados atuais, principalmente os mamíferos, as aves, os répteis escamados (lagartos e serpentes), os anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas) e os peixes teleósteos (o grupo mais abundante e diverso de peixes ósseos hoje em dia).
A evolução da vida ao longo do Paleógeno é relatada por vários sítios paleontológicos espalhados pelo mundo, alguns deles se destacando pelo seu excelente registro fossilífero. Como exemplo, podemos citar o sítio Messel, na Alemanha, cujos fósseis preservam a flora e fauna de uma floresta tropical que existiu ali há aproximadamente 48 milhões de anos, e a mina de carvão Cerrejón, na Colômbia, onde foram descobertos fósseis de répteis gigantescos.
No Brasil, sítios fossilíferos paleógenos são bastante raros devido às particularidades da história geológica do nosso país. Em todo o território nacional, existem apenas alguns poucos sítios datados desse período, concentrados na faixa costeira. Provavelmente, o mais notável desses sítios é a bacia de São José de Itaboraí, localizada no estado do Rio de Janeiro. Apesar de ter uma extensão territorial diminuta, essa bacia preservou um riquíssimo registro fóssil e é até hoje importantíssima para o nosso entendimento sobre como era o Brasil durante o Paleógeno.
Nos anos 1920, o proprietário rural Ernesto Coube descobriu rochas esbranquiçadas em sua fazenda, localizada no município fluminense de Itaboraí. Suspeitando que o material pudesse ser caulim, um minério com aplicações industriais, o fazendeiro apresentou amostras ao engenheiro Carlos Euler. Para surpresa geral, Euler determinou que as rochas descobertas não eram caulim, mas calcário, uma rocha de grande interesse econômico. Após essa descoberta, foram conduzidos estudos de campo na fazenda e percebeu-se que existia dentro dos limites da propriedade uma pequena bacia sedimentar com potencial para a exploração de calcário. Assim, foi descoberta a bacia de São José de Itaboraí.
A propriedade foi posteriormente comprada pela Companhia Nacional de Cimento Portland Mauá, que em 1933 abriu uma pedreira. A pedreira de Itaboraí tinha dimensões enormes, formando uma grande cava no terreno, que antes era plano. A rocha extraída na frente de lavra era levada até o município vizinho de São Gonçalo, onde abastecia uma fábrica de cimento do tipo portland, que é muito visado pela a construção civil. A fábrica de São Gonçalo foi a segunda fábrica de cimento do Brasil e, por isso, foi muito relevante para a história nacional. O então presidente Getúlio Vargas compareceu à inauguração dela e o cimento produzido por essa unidade foi usado para a construção de importantes obras arquitetônicas, como o estádio do Maracanã e a ponte Rio-Niterói.
Mas a bacia de Itaboraí não foi importante apenas devido à sua exploração comercial. Ela também foi (e continua sendo) muito relevante sob o ponto de vista científico, principalmente para a área da Paleontologia. Isto porque a bacia possui um conteúdo fossilífero riquíssimo, que registra a fauna e a flora que habitaram a região durante o período Paleógeno.
Os primeiros trabalhos de campo em Itaboraí recuperaram alguns fósseis, mas com o início da extração de calcário foi descoberta uma quantidade enorme de espécimes preservados em camadas rochosas subterrâneas, que só foram expostas graças às escavações. A descoberta desse material foi notificada a geólogos e paleontólogos, que coletaram os fósseis e os levaram para instituições de pesquisa, com o intuito de salvaguardá-los. A maior parte desses exemplares está conservada até hoje em museus e universidades no Brasil e nos Estados Unidos da América.
A bacia de Itaboraí preservou restos de fungos, vegetais e animais. O registro de fungos e a maioria dos registros de vegetais são baseados em palinomorfos, que são fósseis microscópicos de constituição orgânica. Os palinomorfos encontrados em Itaboraí incluem indícios de fungos ascomicetos e de todos os grandes grupos de plantas: briófitas, pteridófitas, gimnospermas e angiospermas, sendo essas últimas mais numerosas. Também existem alguns registros de macrofósseis (fósseis visíveis a olho nu) de plantas. Entre eles, podemos destacar de folhas atribuídas ao gênero botânico Psidium, que inclui a goiaba e o araçá dos dias atuais, e frutos da espécie Celtis santosi, que também pertence a um gênero que habita o Brasil de hoje.
Entre os animais, um dos grupos mais bem representados em Itaboraí, em termos tanto de quantidade de fósseis quanto de diversidade de espécies, é o dos gastrópodes continentais, popularmente conhecidos como caracóis e caramujos. Existem vinte espécies de gastrópodes consideradas como válidas no registro fóssil de Itaboraí, um número bastante expressivo. A enorme maioria desses caramujos eram animais plenamente terrestres, como as espécies Brasilennea arethusae, Eoborus sanctijosephi e Itaborahia lamegoi. A única exceção era a espécie Biomphalaria itaboraiensis, que era uma forma associada à água doce. O gênero ao qual essa espécie pertence, Biomphalaria, existe até hoje na África e na América do Sul e é notório por ser um vetor do parasita que transmite a esquistossomose.
Não existem em Itaboraí fósseis de invertebrados bentônicos (que vivem associados ao fundo de corpos d’água) nem de peixes. Isso é explicado pois as rochas calcárias que preenchem a bacia são interpretadas como tendo sido formadas em um lago alimentado por fontes termais associadas a falhas tectônicas. Acredita-se que as águas desse lago teriam temperaturas elevadas e uma concentração muito alta de carbonato de cálcio dissolvido, o que inibiria a colonização do ambiente por peixes e outros animais de água doce. A presença de Biomphalaria parece ir contra essa ideia, mas é possível que esses caracóis vivessem em áreas úmidas próximas ao lago e não no lago em si.
O conhecimento sobre os anfíbios de Itaboraí ainda é incipiente, mas os estudos feitos até agora mostram resultados interessantes. Um registro de grande notoriedade é Apodops pricei, um tipo de cecília ou cobra-cega. Restos desses animais são bastante raros no registro paleontológico e a espécie Apodops pricei, conhecida por uma única vértebra, foi o primeiro representante fóssil do grupo a ser descoberto. Entre os anfíbios anuros, existe apenas uma espécie formalmente nomeada em Itaboraí: Xenopus romeri. Apesar de ser conhecida por diferentes partes do esqueleto, essa espécie tem uma taxonomia controversa e existem autores que questionam se ela realmente pertence ao gênero Xenopus, que atualmente é encontrado apenas no continente africano.
Os répteis de Itaboraí, assim como os anfíbios, ainda não são plenamente conhecidos. Ainda assim, temos uma ideia razoável da paleodiversidade desses animais na bacia. Fósseis de cágados são numerosos e estão representados por pelo menos duas espécies ainda não definidas. Também foram encontrados restos de lagartos e estudos preliminares indicam a presença de ao menos três linhagens, incluindo parentes dos iguanas, das lagartixas e dos teiús. As serpentes são o grupo de répteis mais bem estudado de Itaboraí e estão representadas por nove espécies formalmente descritas. Essas incluem Madtsoia camposi, uma cobra que poderia alcançar tamanhos por volta dos cinco metros, e Corallus priscus, cujo gênero (Corallus) ainda inclui representantes viventes, como a cobra-papagaio (Corallus caninus) e a suaçuboia (Corallus hortulanus). Os crocodiliformes também estão presentes no registro fóssil da bacia de Itaboraí, sendo representados por duas grandes linhagens: os caimaníneos, animais semi-aquáticos aparentados com os jacarés dos dias de hoje, e os sebecídeos, que eram grandes predadores terrestres, sem descendentes atuais.
Fósseis de aves costumam ser raros e os registros desse grupo animal em Itaboraí também não são muito numerosos, estando restritos a apenas quatro espécies. Uma delas, Eutreptodactylus itaboraiensis, era uma pequena ave voadora da linhagem dos Cuculiformes, que inclui os cucos e os anus-brancos. As outras três eram animais de hábito terrestre, adaptadas para correr em altas velocidades. Eram elas Diogenornis fragilis, um parente das emas atuais; Paleopsilopterus itaboraiensis, uma ave carnívora da família Phorusrhacidae (cujos representantes são chamados informalmente de aves do terror); e Itaboravis elaphrocnemoides, uma ave de afinidade incerta, mas que segundo alguns estudos seria aparentada com as seriemas.
Entre toda a paleofauna de Itaboraí, os animais de maior destaque são os mamíferos. Os fósseis de mamíferos da bacia são muito numerosos e apresentam uma grande diversidade de espécies, o que faz com que os paleomastozoólogos (pesquisadores que trabalham com mamíferos fósseis) tenham grande interesse no registro fóssil de Itaboraí. Os mamíferos são muito úteis para determinar a idade das rochas da bacia, pois são usados para embasar estudos de bioestratigrafia, um ramo da Ciência que estima a idade das camadas rochosas por meio dos fósseis que elas contêm. A grosso modo, podemos concluir que como outros sítios paleontológicos com mamíferos similares aos de Itaboraí foram datados com segurança para o período Paleógeno, a bacia deve ter se formado nesse mesmo período, mesmo que não tenha sido possível calcular a idade exata de formação das suas rochas.
Existem três grandes linhagens de mamíferos em Itaboraí. Os xenartros (grupo dos tamanduás, preguiças e tatus) são os menos comuns, representados por apenas uma espécie formalmente descrita, Riostegotherium yanei, que é considerado o mais antigo tatu conhecido. Os restos mais numerosos pertencem aos ungulados sul-americanos, uma linhagem de animais extintos que não deixou descendentes. Esses estranhos mamíferos, de postura quadrúpede e dieta herbívora, incluíam várias espécies, desde o pequeno Asmithwoodwardia scotti, do tamanho de um gato, até o “gigante” Carodnia vieirai, o maior mamífero de Itaboraí, que atingia o tamanho de uma anta.
O terceiro grupo de mamíferos presente na bacia é o dos metatérios, que inclui os marsupiais atuais e diversas linhagens extintas. Seus fósseis não são tão numerosos quanto os dos ungulados, mas a diversidade de espécies conhecidas é altíssima. Os metatérios de Itaboraí incluem o Silvenator brasiliensis, um predador do tamanho de um cão beagle, Eobrasilia coutoi, um animal de porte e hábitos similares aos dos gambás atuais, e o diminuto Minusculodelphis minimus, tão pequeno que caberia na palma de uma mão.
O registro geológico e paleontológico de Itaboraí permite uma interpretação sobre o paleoambiente da bacia durante o período Paleógeno. As rochas calcárias e a presença de pólen de vegetais que vivem próximos à água doce leva à conclusão de que existiam um ou mais lagos na região, mas a ausência de peixes e invertebrados bentônicos indica que as águas desse ambiente seriam hostis à vida animal. A grande diversidade de marsupiais arborícolas e frugívoros, bem como o registro de pólen e macrofósseis de plantas florestais, indica que as bordas do lago deveriam ser cobertas por florestas tropicais. Contudo, a presença de mamíferos com dentes adaptados a uma dieta pastadora sugere que também deveriam existir áreas abertas próximas ao centro da bacia. Quantidades significativas de pólen de gimnospermas, que são plantas mais bem adaptadas a climas frios, indicam que em áreas mais afastadas do centro da bacia existiam terras altas cobertas por árvores como araucárias, cujo pólen era dispersado pelo vento e era carregado até a área da bacia.
Devido ao tamanho limitado da bacia de Itaboraí, os depósitos de calcário foram se esgotando, fazendo com que a exploração mineral deixasse de ser lucrativa. Em 1984, após pouco mais de 50 anos do início de sua operação, a pedreira de Itaboraí foi desativada. Com o fim da escavação e a saída da Companhia Nacional de Cimento Portland Mauá, a grande cava deixada para trás começou a ser preenchida por água, formando um lago na área da bacia, que escondeu a maioria das exposições rochosas restantes.
Apesar do fim da exploração comercial, os pesquisadores que trabalhavam com a geologia e a paleontologia da bacia continuaram a visitá-la para realizar pesquisas e atividades de ensino. A população local também frequentava a área para realizar atividades de lazer, como pescaria no lago. O interesse de cientistas e leigos pela área da bacia de Itaboraí incentivou que medidas concretas fossem tomadas para a sua preservação. Em 1990, o terreno da antiga pedreira foi desapropriado pela prefeitura de Itaboraí, passando para a sua guarda. Em 1995, a área foi transformada no Parque Paleontológico de São José de Itaboraí, criado por meio da Lei Municipal nº 1.346, de 12 de novembro de 1995.
Dos anos 90 para cá, diferentes ações foram tomadas no sentido de melhorar a infraestrutura do parque e promover ações culturais e de extensão. Entre elas, podemos destacar um projeto iniciado em 2003 e apoiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), que promoveu a capacitação de estudantes de escolas próximas à bacia nas áreas de Geologia, Paleontologia, Arqueologia e meio ambiente.
Em 2018, o parque alcançou uma grande conquista, que foi uma reclassificação no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc). Após esse processo, o parque passou a ser considerado uma unidade de conservação de proteção integral e foi renomeado como Parque Natural Municipal Paleontológico de São José de Itaboraí (PNMPSJI). Essas mudanças institucionais foram acompanhadas pela reabertura do parque para visitação do público e pela contratação de novos funcionários para atuar nas áreas de gestão, conservação e comunicação, duas importantes medidas para garantir a continuidade de suas atividades.
Recentemente, a história da bacia de Itaboraí ganhou um novo marco. O estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei nº 10.136, de 16 de outubro de 2023, declarou Itaboraí como Cidade de Relevância Paleontológica Estadual. Essa lei traz um reconhecimento formal à riqueza geopaleontológica da bacia de Itaboraí e também representa uma maior atenção da esfera estadual a esse patrimônio. Torcemos para que esse título aumente a atenção para a importância da bacia de Itaboraí e que a sociedade e o poder público continuem se esforçando para conservar esse importante sítio geopaleontológico.
Referências
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
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Biólogo e mestrando no Programa de Pós-graduação em Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa (UFV), vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada (LAPOC) do Departamento de Biologia Animal (DBA).
