Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Vereador em conversa com prefeito de cidade do interior paulista apresenta: você precisa conhecer o caboclinho! E o Prefeito pergunta: quem é esse aí?
Caboclinho, que na verdade não é um, mas muitos, trata-se do nome popular de aves do gênero Sporophila, o que significa, em tradução livre, “amigos das sementes”. São aves canoras, ou seja, se destacam pelo canto e cujos parentes mais ilustres são o curió e o bicudo. O grupo denominado caboclinho é composto por espécies migratórias, cuja classificação taxonômica ainda hoje, apesar de o gênero ter sido estabelecido em 1884, é objeto de pesquisa, uma vez que uma mesma espécie pode apresentar “morfos” diferentes (uma mesma espécie pode apresentar variações na plumagem).
Mas voltando a nossa história, por que o caboclinho é uma personalidade tão importante e que precisa ser conhecida até pelo prefeito?
Uma das mais importantes formas de receita para os municípios é o turismo e, cada vez mais, essa é uma atividade segmentada. O turismo de observação de aves é uma atividade que vem ganhando muitos adeptos em todo o território nacional e , até mesmo, de outros países, uma vez que o Brasil possui uma das maiores biodiversidades de avifauna no planeta.
Uma das estrelas da observação de aves são as aves migratórias. Há pouco tempo, uma ave migratória marinha foi notícia em vários jornais no mundo por ter “batido um recorde” para uma travessia planetária de mais de 13 mil quilômetros. Isso mesmo: 13 mil quilômetros em voo contínuo do Alaska a Austrália em cerca de 11 dias!
Entretanto, algumas espécies de avifauna, igualmente migratórias, têm suas rotas migratórias pouco ou completamente desconhecidas. Esse é o caso do caboclinho, um pequeno animal com cerca de sete gramas e uns 10 centímetros de comprimento que é capaz de voar por distâncias de até mil quilômetros! Ao fazer sua migração, esse pequeno herói enfrenta todo o tipo de perigo, que vai desde a ação de predadores, destruição ambiental (pois precisam de áreas brejosas com capins nativos), fogo e até a maior ameaça de todas, a captura por seres humanos! E o engaiolamento de animais de vida livre, em particular deste grupo de aves, além de cruel, impacta desproporcionalmente os machos, pois são eles que cantam para atrair as fêmeas e têm a plumagem mais vistosa. Essa prática, portanto, afeta muito a reprodução desse grupo.
Impressionado, amigo(a) leitor (a)? Quer saber mais?
Conhecendo o caboclinho
O caboclinho, que não é uma, mas são onze espécies, conta uma história de expansão evolutiva ainda sendo escrita, com um complexo fluxo gênico acontecendo entre as diferentes espécies. Inclusive sendo as variações de canto um dos elementos importantes para a diferenciação taxonômica entre elas.
Ou seja, o caboclinho tem potencial para novas descobertas científicas, em função dos desafios para sua classificação taxonômica e conhecimento de sua biologia, e para turismo de observação de fauna, pelo seu canto, sua plumagem e até uma forte dose de emoção pelos desafios que precisa enfrentar no seu deslocamento migratório. Ufa!
Mas onde entram as ações de soltura e, claro, as áreas de soltura naquela nossa história da conversa entre o vereador e o prefeito?
Um projeto de área de soltura, no município de Indaiatuba (SP) uniu um pai advogado e uma filha bióloga (tinha que ser!) na paixão pela observação de aves e pela conservação ambiental.
Uma fazenda adquirida nos anos 20 do século passado passou por várias fases produtivas tradicionais até que, em 2015, obteve certificação orgânica para produção de abacate. A partir daí não houve mais volta para as formas tradicionais de produção e em 2018, numa parceria com a renomada SAVE Brasil, entidade de renome mundial na conservação da avifauna, passou a realizar a soltura de pássaros. Em 2019, fizeram convênio com o SAAE – Serviço Autônomo de Águas e Esgotos e, a partir de então, a propriedade passou a fazer parte do programa de revitalização de nascentes, com a realização do plantio de mudas de árvores nativas para recomposição da mata ciliar e a formação de um corredor ecológico ligando o rio Capivari Mirim aos 10 hectares de mata nativa que já eram conservados originalmente.
Mas o verdadeiro mérito dessa dupla de pai e filha é ter conseguido promover a conservação ambiental usando duas estratégias muito importantes: a observação de aves, tanto convidando visitantes à área de soltura como promovendo eventos de observação, e parcerias com os diferentes atores do setor público. Engajar diferentes públicos amantes da natureza e ao mesmo tempo garantir o comprometimento do poder público com projetos que promovam a conservação do ambiente natural é uma combinação vencedora para mudar a realidade! Especialmente em um município que só possui 4,43% de cobertura vegetal natural!
Agora voltemos aos nossos caboclinhos migratórios. Veja o tamanho do desafio desses bichinhos, que foram escolher justamente um pedacinho de Indaiatuba para fazer uma parada em seu deslocamento e se alimentar do pouco de capim nativo que ainda resta lá!
Merecem ou não pedir música no Fantástico?
Os caboclinhos são considerados “espécie indicadora” para a identificação de locais de especial interesse para conservação ou até mesmo para restauração, pois mais da metade das espécies que compõe o grupo está em algum grau de ameaça de extinção. Como já dissemos, algumas espécies dessas aves fazem migrações de quase mil quilômetros, saindo da Argentina e Uruguai, onde se reproduzem, para áreas mais quentes no interior do Brasil, chegando na primavera.
E para completar o quadro desafiador para a conservação desses animais, ainda há muito o que conhecer sobre sua reprodução e as demandas ecológicas durante sua migração.
Olha um deles aí! Comendo tranquilamente uma semente!
E é através do caboclinho que, finalmente, todos os personagens de nossa história se encontram. A forte admiração por esse herói está levando prefeito, vereadores, observadores de aves e proprietários a se unirem e criarem o toda uma estratégia para a conservação desses animais no município paulista. A iniciativa já está em andamento!
A primeira etapa foi uma apresentação do projeto, com criação de grupo de trabalho para seus integrantes, que incluiu a participação dos seguintes membros:
– Secretário municipal de Segurança Pública Sandro Bezerra Lima.
– Diretor da Guarda Civil de Indaiatuba, Edson Doniste Massaioli
– Guarda civil ambiental Claudemir Penteado
– Diretor da Defesa Civil de Indaiatuba, Paulo César Feijão
– Secretário Municipal de Serviços Urbanos e Meio Ambiente Guilherme Gaspar Magnusson, representado pelo arquiteto e urbanista Rafael Barnabé
– Secretária Municipal da Cultura Tânia Castanho, representada pela coordenadora de Turismo da secretaria, Gesiane Zanella
– Vereador Sérgio Teixeira
Nossa, quanta gente! É preciso citar a turma toda que está assumindo esse importante compromisso com a conservação, especialmente em um município que precisa muito de ações como essa para caminhar mais rapidamente na direção da restauração ambiental.
Além das reuniões de planejamento, o grupo fez uma visita à área onde os animais estão para a apresentação formal dos caboclinhos para a turma toda.
E aí, observando com calma, lá naquele capim alto atrás dos carros, olha o que eles encontraram…
Além de estruturar um projeto de conservação dessa área , esse mesmo grupo está promovendo a realização de um evento de observação de aves, o primeiro no município. A finalidade é promover a importância da restauração ambiental através das lentes da observação de aves.
Você, morador de Indaiatuba, já pensou o quanto é lindo avistar muito mais dessas joias nos próximos anos em seu quintal?
Saiba mais sobre os caboclinhos
– Breeding biology and conservation of the Marsh Seedeater Sporophila palustris
– Tiny Bird, Huge Mystery—The Possibly Extinct Hooded Seedeater (Sporophila melanops) Is a Capuchino with a Melanistic Cap
– Another color morph of Sporophila Seedeater from the capuchinos group (Aves, Emberizidae)
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