Bióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é mestranda junto ao Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias (NERF)
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Algumas espécies de animais apresentam dimorfismo sexual, ou seja, machos e fêmeas têm características distintas que os identificam facilmente. É o caso dos leões, em que distinguimos os machos pela juba. Considerando os insetos, em algumas espécies existe uma distinção que permite que as fêmeas tenham maior sucesso reprodutivo, alocando mais recursos para a produção de ovos: a ausência de voo. Já os machos mantiveram a habilidade de voar, aumentando suas chances de encontrar uma parceira para reprodução. É o caso da espécie de vagalume do velho mundo Lampyris noctiluca. Esse animal também tem outra particularidade reprodutiva: depois de adultos, os indivíduos param de se alimentar para focar apenas na reprodução e as fêmeas morrem horas após ovopositar. Logo, obstáculos que atrasem a reprodução podem ser muito custosos para as populações.
A ausência do voo nas fêmeas faz com que elas tenham uma mobilidade menor do que os machos voadores, dificultando a busca por locais adequados para exibir sua luminescência, a fim de serem notadas por eles. Devido a essas características, alguns cientistas pensaram na seguinte hipótese: os machos poderiam “esperar” a vida adulta para se locomover para as áreas mais abertas, onde ocorre a reprodução, pois voam; já as fêmeas deveriam começar essa jornada ainda no estágio larval, pois o deslocamento tem um alto custo energético e temporal. Além disso, por essa característica de deslocamento pelo solo das fêmeas, os mesmos cientistas também levantaram a hipótese de que elas poderiam estar mais vulneráveis aos atropelamentos em rodovias. Pois foi exatamente isso que os pesquisadores encontraram.
A vasta maioria das larvas vistas em deslocamento, tanto na superfície da rodovia estudada quanto em áreas adjacentes, eram fêmeas quase em estágio de pupa (etapa em que ocorre a metamorfose para a fase adulta), provavelmente em busca de um bom local para exibir sua luminescência. Por consequência, concluíram que a maioria das larvas vistas atropeladas são também fêmeas próximas ao momento reprodutivo. Esse padrão, com as fêmeas sendo a maioria dos atropelamentos logo antes da reprodução, é uma ameaça à manutenção das populações dessa espécie, já que pode representar uma diminuição no número de descendentes deixados a cada geração.
Como se não bastasse, sabe-se que a reprodução de espécies de vagalumes também está fortemente ameaçada pela poluição luminosa, já que esses animais se comunicam e encontram seus parceiros por meio da luminescência. As fêmeas de Lampyris noctiluca escalam até o topo das folhas de gramíneas, ou outras estruturas proeminentes, para virarem seus abdomens luminescentes para cima e se tornarem mais visíveis para os machos, que não emitem luz. Esse processo só ocorre quando a luminosidade no local está abaixo de determinados limiares. Em um outro artigo, pesquisadores revelaram que a poluição luminosa afeta negativamente a habilidade dos machos de encontrarem as fêmeas, mesmo em níveis bastante baixos. As rodovias, como exploramos em outro texto, podem ser uma fonte importante de poluição luminosa, podendo prejudicar o sucesso reprodutivo dos indivíduos expostos a esse impacto e a persistência das populações nesses locais.
Resumindo, rodovias representam uma dupla ameaça para a reprodução da espécie Lampyris noctiluca (possivelmente, para outros vagalumes também), matando fêmeas em idade reprodutiva e desorientando fêmeas e machos na busca por parceiros de acasalamento. Difícil ser vagalume num planeta cheio de luzes e rodovias!
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