As quebradeiras de coco-babaçu: um conto sobre ecofeminismo e capitalismo patriarcal

Semanas atrás, fazendo a leitura do decreto que aprova o macrozoneamento ecológico-econômico da Amazônia Legal, me deparei com a preciosa existência das “quebradeiras de coco-babaçu”: mulheres de comunidades tradicionalmente extrativistas do estado do Maranhão (presentes também no Tocantins, Pará e Piauí) que fazem a coleta e processamento dos produtos extraídos da Palmeira Attalea speciosa, árvore que chega a medir 20 metros de altura.

Na época em que as quebradeiras “foram feitas” quebradeiras (e não que “se fizeram” quebradeiras – como quem escolheu ou pôde escolher), acreditava-se que mulheres e meninas não precisavam aprender a ler ou a escrever. Assim, pelo fato único de terem nascido do sexo feminino, aquelas que mais tarde seriam intituladas “quebradeiras” foram delegadas à função artesanal, braçal, mecânica e morosa da extração da castanha de um coco, feita com o uso de apenas – até hoje – uma pedra e uma machadinha.

Ao longo do tempo, a atividade foi passada de geração a geração – entre avós e mães e tias e filhas e netas e primas e vizinhas – e se tornou uma tradição. Juntas, as mulheres saem para colher os cocos e, juntas, se sentam no chão, por vezes cantando, para realizar a extração da castanha. O objetivo principal desse processo é a feitura do óleo de babaçu a partir da torra e cozimento dessas nozes, mas como produtos secundários estão a farinha do mesocarpo, usado em bolos e pães; a folha e o lenho, usados na construção de casas ou como adubo e até mesmo a palha e a própria casca do coco, utilizada na produção de artesanatos. E claro, por fim, mas jamais menos importante: o empoderamento feminino, a partir da independência financeira; e o respeito à natureza, fruto da sustentabilidade inerente a toda atividade extrativista artesanal.

Assim, a história que começou a partir do machismo estrutural, se transformou pela resistência e resiliência, características intrínsecas da força e existência do “bicho-mulher”, e agora a quebradeira de coco do Maranhão, Eunice da Conceição, pode afirmar: “hoje somos livres” (em entrevista, no vídeo “Quebradeiras de coco-babaçu, as guardiãs da natureza”).

Aqui eu estendo a minha preocupação pessoal e socioambiental a você: até quando a dona Eunice da Conceição poderá dizer que as quebradeiras estão livres?

Ameaça ao babaçu

Os babaçuais do Maranhão são protegidos pela Lei do Babaçu Livre, porém, assim como muitas outras plantações e florestas nativas de outras partes do Brasil, são ameaçadas pelo avanço das vorazes monoculturas e pastagens agropecuárias. E mais recentemente, uma nova e forte ameaça ao extrativismo do babaçu tem vindo da siderurgia: a indústria que está se utilizando do coco babaçu na íntegra para suprir a sua demanda de carvão de uma forma extremamente indiscriminada: sem a extração da castanha. Em outras palavras, jogando o babaçu inteiro direto na carvoeira, desarticulando e praticamente inviabilizando todos os outros possíveis usos do recurso.

E não acaba por aí (infelizmente): essa região também sofre com conflitos de terra envolvendo apropriação ilegal de terra por fazendeiros, que além de se apossarem da área ainda passam a exigir (vejam só!) um percentual da produção diária de castanhas das quebradeiras. Eles utilizam, inclusive, de estratégias de violência moral, física e sexual para coibir as que se negam a deixar suas terras ou ceder a essa exigência irracional.

E (sim, ainda tem mais) além da atividade de exploração mineral, há também casos como o da Refinaria Premium I da Petrobrás, construção que foi levantada e abandonada em Bacabeira (MA) por irregularidades e “porque os chineses não confiavam na paridade de preços”. A curta estadia dessa refinaria deixou para trás um rastro sem sentido de, por um lado, impacto ambiental e destruição de vegetação e, pelo outro, frustração dos vários locais que apostaram suas esperanças no desenvolvimento econômico e nas oportunidades de trabalho que seriam supostamente trazidos com o empreendimento.

Apesar da revolta que eu senti ao perceber toda a intimidação que sofre o Maranhão, suas palmeiras e suas mulheres, no site do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) eu descobri que ainda é, de certa forma, completamente possível nutrir esperanças. E mais que isso: sentir inspiração, ter novas ideias. Se chamando de “filhas”, as mulheres do MIQCB escrevem, de uma forma muito bonita, que “com nossa força e trabalho, alimentamos a Mãe Palmeira. Em retribuição, ela sustenta a todas nós.” A luta delas não é só pela própria existência e autonomia. É também pelo fortalecimento da agricultura e extrativismo de base agroecológica e econômico-solidária, conservação da sociobiodiversidade nas florestas de babaçuais e melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais. Enfim, sobre a natureza e sobre a proteção de um bem maior que é direito de todos (como bem prega o artigo 225 da nossa belíssima Constituição de 88).

Outros caminhos

É com certo esforço que eu tento descobrir como terminar este artigo, mas acho que o que eu queria acima de tudo era dar visibilidade às MIQCB como um exemplo de alternativa ao nosso atual sistema socioeconômico. Olhar com atenção para as quebradeiras de coco-babaçu nos permite lembrar que existem outros caminhos. E não só existem no sentido simples, de “possibilidade distante e futura” para qual “podemos ou ainda vamos criar”, mas no sentido de presença concreta, de realidade, de que já está aqui funcionando e em andamento há muito tempo. E o melhor: favorecendo um bando de gente ao mesmo tempo em que favorece a biodiversidade nacional. Você sabia que a Mata dos Cocais (onde são encontrados os babaçuais) são abrigo para algumas ameaçadas de extinção como o urubu-rei, o tatu-canastra e o cachorro-do-mato-vinagre?

Não há quebradeiras de coco sem a palmeira-babaçu, nem palmeira-babaçu sem as quebradeiras de coco. E isso reflete muito o caráter interdependente da natureza reconhecido pelo ecofeminismo e negligenciado pelo atual capitalismo patriarcal. O último se baseia em um sistema de opressão sexista, racial, econômica, animalista, político-ideológica, sociocultural, ecológica, espiritual e de saberes, que busca a sustentabilidade de quase nada e o lucro de quase tudo, e vê o babaçu apenas como carvão e que nunca, jamais, chamaria uma palmeira de “mãe”. É simbólico, mas também sintomático e duramente relevante e realista.

Referências

• Site do MIQCB – Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
• Quebradeiras de coco babaçu na Amazônia: luta em defesa das territorialidades
• Quebradeiras de coco-babaçu, as guardiãs da natureza
• Mapa de Conflitos – Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil – MA – Quebradeiras de coco de babaçu denunciam situação de violência e exploração do trabalho na região do Rio Mearim, no Maranhão
• Petrobras cancela ‘refinaria premium’ e cidade lida com perdas e frustração
• Prejuízo de refinaria não concluída no Maranhão foi de cerca de R$ 2 bilhões, não de R$ 5 bilhões
• #EscolaFeminista: para entender e enfrentar os sistemas de opressões
• Ecofeminismo materialista/socialista: uma entrevista com Ariel Salleh
• Quebradeiras de Coco Babaçu – Wikipedia
• Mata dos Cocais – Wikipedia

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